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 Segunda Parte .
                     A história do Menino Jesus
               
 A NOMADA
                    
                   De todas as crianças de Nazaré, nenhuma gostava mais de
              José do que Cleofas. Mas desde o dia em que José chegou a Nazaré. Não é mentira
              que José fez a sua entrada em Nazaré de forma espetacular. O seu cavalo
              ibérico, negro como a noite, e os seus três cães assírios, que caçavam leões,
              foram uma grande quebra da monotonia. Depois, o cavaleiro, um gigante montado
              no seu Bucéfalo, filho de Pégaso, o cavalo dos super-anjos, com o cabelo nem
              comprido nem curto e, à cintura, a espada de Golias. E o estrangeiro disse que era
              um nómada que se aventurava pelas províncias do reino. Os nazarenos olharam
              para ele e não acreditaram: um nómada como qualquer outro, que se aventurava
              pelos caminhos de Deus no dorso de um potro daquela raça, belo como o cavalo de
              um arcanjo em combate, guardado por três animais selvagens, belos como
              querubins e temíveis como dragões?
   Este gigante era puro mistério. Os seus traços
              psicológicos e físicos não coincidiam com a imagem popular do nómada sem pátria
              pequena, sempre bêbado, sempre briguento, bastante magro, com focinhos
              vermelhos cor de vinho, os miolos queimados pelo sol e pelo frio. Não senhor,
              esse nómada não era apenas mais um. Os nómadas andavam de burro ou, quando
              muito, de éguas velhas, com percevejos, pulgas e vira-latas por companhia. Não
              senhor, aquele José era puro mistério. Segredo ou não, o facto é que Cléofas, o
              irmão mais novo da Virgem, afeiçoou-se tanto ao nómada nascido em Belém que
              acabou por viver mais na tenda do Carpinteiro do que na sua própria casa. Mas
              eu sei que o que aquele rapaz mais desejava era realizar o seu sonho de montar
              no cavalo de José e trotar pelas colinas, levantando poeira de estrelas nos
              olhos da sua princesa azul. Coisas de rapazes! E foi exatamente isso que
              aconteceu. Aconteceu. Todas as irmãs de Cleofas se casaram. Exceto as suas duas
              irmãs mais velhas, Maria e Joana, que se tinham mantido virgens desde a morte
              do pai. De facto, todas as suas irmãs já tinham casado, constituído família e
              tido filhos. Ele, Cléofas, era o único dos filhos de Jacob de Nazaré que ainda
              vivia em casa da mãe.
   De fora, para os forasteiros, Cléofas era o senhor da
              aldeia, o filho mimado das suas irmãs, as Virgens. Enquanto todos os rapazes
              estavam ocupados a ajudar nos campos, Cleofás vivia como um príncipe, sem saber
              o que era uma foice e uma foice. Por isso, se passava o dia na carpintaria do
              José, não era porque precisasse de ganhar o pão. De todo. Se decidiu servi-lo
              como aprendiz, não foi porque o irmão da Virgem tivesse de aprender um ofício.
              O que Cleofas realmente o privava era de se elevar aos olhos do Carpinteiro, de
              ganhar a sua confiança e receber a sua autorização para pegar no barco, para
              subir para cima daquele cavalo ibérico e desfrutar do prazer de ver o mundo no
              dorso daquela criatura mágica. E assim foi.
   Depois de Cleofás ter passado de acólito a frade, já
              andava pelo mundo, de festa em festa, no dorso do maravilhoso cavalo do seu
              patrão. Os aldeões ficaram aborrecidos por o Carpinteiro ter dado tanta corda
              ao rapaz. Um cavalo assim não se prestava, sobretudo a uma criança.
   A resposta de José às suspeitas dos seus novos vizinhos
              foi emprestar ao aprendiz, para além do seu cavalo, dois dos "seus
              cachorros". Sempre que enviava o seu ajudante e aprendiz de carpinteiro a
              uma aldeia vizinha, José dava-lhe como companheiros de viagem um par dos seus
              cachorros, dois cães em vias de extinção que lhe tinham sido oferecidos pelos
              seus padrinhos babilónicos.
   Cleofas começou por fazer um recado à aldeia vizinha, a
              cavalo, claro. E acabou por ter o cavalo do seu patrono como seu, quando, por
              ocasião de uma festa local, a das vindimas, por exemplo, as suas irmãs casadas
              exigiram a sua presença. Foi assim que Cléofas conheceu Maria de Canaã, a
              futura mãe dos seus filhos, os famosos irmãos de Jesus.
   Cléofas e a senhora conheceram-se, casaram, instalaram-se
              na casa da Filha de Jacob e tiveram os seus filhos.
                   Digamos que a Carpintaria do Nómada não era uma
              multinacional de mobiliário, nem tinha vocação para ser líder no sector, mas
              para Cléofas aquele José era o melhor. Apaixonado e pai dos seus filhos, a
              oficina do patrão era tudo o que tinha, e Cleofás estava disposto a dar tudo de
              si antes de a ver falir. Em todo o caso, o patrão era um homem estranho. Nunca
              lhe faltava dinheiro. Vendesse ou não vendesse, ganhava sempre a casa. Também
              não o incomodava com os seus problemas. Nunca o fez. De facto, o único problema
              de José era o facto de não ter amante. Nem se sabe se tinha alguma pretendente.
              Não por falta de mulheres. Não. Era ele, José. Não tinha mulher porque Deus
              ainda não lha tinha dado. E José disse-o com o mistério de quem tem um segredo
              indizível.
   Deus há-de dar, irmão, Deus há-de dar...", responde
              José ao rapaz.
   Pouco depois do nascimento de seu sobrinho José, o
              segundo filho de Cléofas, Nossa Senhora encerrou o luto pela morte do pai.
   Nossa Senhora tinha vencido. Tinha feito um voto e
              tinha-o cumprido. Agora era livre de casar; e, ao casar, cumpriria o juramento
              que o seu pai tinha feito ao Senhor e que não pôde cumprir porque a Morte lhe
              atravessou o caminho.
   Perante testemunhas sagradas, Jacob de Nazaré jurou no
              seu dia, sobre o berço da sua filha primogénita Maria, herdeira legítima do rei
              Salomão, sobre a sua vida, Jacob jurou que só daria a sua filha por mulher ao
              filho de Heli, filho de Resa, filho de Zorobabel, filho de Natan, profeta,
              filho de David, rei.
   Pouco depois do nascimento do segundo filho de Cléofas,
              José, o Carpinteiro, pediu à Viúva a mão da Virgem Maria. A Viúva aceitou o
              pedido e, pouco depois, foi assinado o contrato de casamento entre Maria, filha
              de Jacob, filha de Matã, filha de Abiud, filha de Zorobabel, filha de Salomão,
              filha de David, rei, e José, filho de Heli, filho de Resa, filho de Zorobabel,
              filho de Natan, filho de David, profeta.
   A notícia do casamento de José, o Carpinteiro, e de
              Maria, a Virgem, correu por Nazaré.
   A Virgem casa-se.
                   -Com o Carpinteiro. Eu sabia-o.
                   A noiva é um par excecional. Dona da casa da colina, dona
              das melhores terras da região, fundadora da alfaiataria de Nazaré que vendia os
              melhores, mais bonitos e mais baratos vestidos de noiva da região.
   Quem era o noivo? Um zé-ninguém de Belém, um nómada
              aventureiro que tinha encontrado o que procurava. Quem diria que, onde tantos
              bons partidos falharam, um forasteiro sem causa teria sucesso!
                   Assim, se por parte da mãe o nosso Jesus era herdeiro de
              Cléofas de Jerusalém, doutor da lei, seu avô, e se por parte da mãe lhe
              pertenciam também todos os bens do seu avô Jacob de Nazaré, então estamos a
              falar de um jovem rico chamado Jesus de Nazaré. Ou pensam que quem pediu ao
              jovem rico que deixasse tudo e o seguisse não fez ele próprio esse ato de
              renúncia e de abandono de todos os seus bens?
   Filho de seus pais, durante o seu mandato, o nosso Jesus
              elevou a economia da sua família ao seu máximo esplendor de conforto e
              prosperidade. Durante os dias em que esteve à frente da Casa de sua Mãe, as
              adegas encheram-se de excelentes vinhos, os armazéns transbordaram de trigo,
              azeite, azeitonas de mesa, figos, romãs, leite, carne e peixe que lhe eram
              trazidos do Mar da Galileia para sua casa, quando o nosso Jesus não ia
              buscá-los pessoalmente. Os vinhos das vinhas de Jesus de Nazaré eram vendidos
              em toda a Galileia; pouco mas excelente, o melhor. Fazia-nos felizes e nunca
              nos tornava violentos, no dia seguinte ao acordar com a cabeça limpa e o
              coração alegre. Veio de Jesus de Nazaré, veio de Baco, diziam os romanos da
              guarnição de Séforis, a duas horas de distância.
   Os trisavós da sua mãe, Isabel e Zacarias, tinham-lhe
              também legado propriedades fora de Jerusalém.
   O herdeiro legítimo de Zacarias e Isabel era João, como
              toda a gente sabe. Antes do nascimento de João Batista, Isabel e Zacarias
              legaram tudo o que possuíam à mãe de Maria, pois já não esperavam ter um filho.
              Este testamento nunca foi revogado devido à morte violenta de Zacarias e ao
              desaparecimento de Isabel e João nas grutas do Mar Morto.
   Assim, na Jerusalém do dinheiro, o Jovem Nazareno era
              conhecido como se conhece um mistério. Ninguém sabia realmente quem ele era. O
              que todos pareciam concordar era que era Jesus de Nazaré, filho da Senhora
              Maria, um jovem de prudência e sabedoria para além da estatura normal de um
              homem da sua juventude. Manuseava dinheiro, mas não se interessava pelo poder.
              Estava habituado a mandar e a ser servido e, no entanto, continuava a ser
              solteiro. Era culto, falava as línguas do império, achas que lhe deram um intérprete
              para falar com Pilatos? Sabia escrever, tinha um génio para os negócios. A sua
              mãe era o ponto fraco do Jovem Nazareno, mas quem é que não pode ser perdoado
              por isso?
   
               CASAMENTO E NASCIMENTO DA CRIANÇA
                    
                   Maria e José ficaram noivos. A regra geral era que o pai
              do noivo ia falar com os pais da noiva sobre o desejo do seu filho de casar com
              a noiva. Discutiam o dote e fechavam o negócio. No caso de José, foi o próprio
              José que falou com a mãe da noiva e pediu-lhe a sua filha como esposa. A mãe da
              noiva aceitou e assinaram o contrato de casamento.
   Naquela altura, a tradição ditava um ano de namoro, desde
              a assinatura do contrato até ao dia do casamento. Passado um ano, podiam
              casar-se. No entanto, durante o ano de noivado, os noivos estavam sujeitos à
              lei do adultério. Era a norma, mas não era de modo algum uma lei sagrada.
              Moisés não tinha dado qualquer preceito sobre a proibição do casamento
              imediatamente após a assinatura do contrato de casamento. Foram os próprios
              judeus que impuseram a si próprios esse ano de espera.
   Não se sabe se censuraram Deus por ter sido tão brando,
              mas o facto é que, não contentes com a montanha de leis que ele lhes ditou,
              atiraram às costas outra montanha de prescrições, leis, tradições, mandamentos,
              normas canónicas e sabe-se lá quantas outras obrigações. Assim, como não se
              tratava de uma verdadeira lei, ninguém tinha medo de ter de acelerar os
              procedimentos devido à fraqueza da carne. A criança nasceu sete meses antes do
              tempo. Mas também não há motivo para alarido: um bom casamento não cura o
              pecado? Claro que sim.
   O lado negativo é que, sem ser uma lei, a fraqueza da
              carne podia ser paga com a morte, se o pecado não tivesse sido cometido pelo
              noivo. Neste caso, todo o peso da lei sobre o adultério recaiu sobre a noiva.
              Julgada como adúltera, pagava a sua fraqueza com a pena de morte, geralmente
              por lapidação.
   Por muitas outras razões, o contrato de casamento podia
              ser quebrado. Não era comum, mas havia casos. Incompatibilidade de carácter,
              por exemplo. O dinheiro era devolvido e todos iam para casa.
   No caso mais geral, a gravidez durante o ano de espera, o
              sangue também não corria para o rio. São jovens, mas bem-vindo o neto, e a
              culpa é dos rapazes! Um banquete de casamento, uma grande festa, a criança
              nasceu sete meses antes do tempo, e depois? glória bendita. O que começou bem,
              acabou bem, é isso que importa.
   O caso da Virgem era de natureza diferente. Um dia -
              confessou aos Apóstolos - apareceu-lhe o anjo de Deus e no dia seguinte já
              estava em estado de graça. Os Apóstolos contaram aos seus sucessores, que
              contaram aos seus sucessores, e a confissão de Nossa Senhora continua a ser
              contada de boca em boca.
   Conceber por obra e graça do Espírito Santo é dito muito
              cedo.
                   "Estou num estado por obra e graça do Espírito
              Santo", deve ter confessado Nossa Senhora a si própria num desses dias.
   Ninguém acreditará que Nossa Senhora saiu a correr a
              gritar a história da Anunciação a todo o mundo. Não é algo que aconteça todos
              os dias. De facto, em toda a história da humanidade, nunca tal fenómeno
              aconteceu antes. O caso mais próximo de uma conceção sobrenatural da natureza
              de que nos falam os Evangelhos encontra-se no mundo da mitologia.
   A própria mãe de Alexandre, o Grande, confessou que teve
              o seu filho com um dos deuses do mundo clássico a que pertencia. Por respeito à
              mãe ou por orgulho, o filho manteve a sua origem semi-divina. Tanto quanto me
              lembro, este é o caso mais próximo daquele que a Virgem pôs em cima da mesa ao
              longo dos séculos.
   Ora, porque não? O Deus dos hebreus tinha feito muitas
              obras extraordinárias desde os dias de Moisés até ao presente. As suas
              Escrituras falam da conceção de um Menino nascido de uma Virgem. Como exemplo
              de fantasia levada ao extremo máximo da imaginação e do génio, o facto de o
              Deus criador dos Céus e da Terra poder realizar uma obra dessa natureza era
              equiparável à conceção da Sua Natureza pelos filhos de Adão e Eva. Porque é que
              um dos atributos atribuídos ao Deus de Moisés - todo-poder, omnipotência, omnisciência
              - não poderia encenar um acontecimento tão impossível de acreditar?
   Agora, Maria, corre e explica isso a alguém. Foge,
              procura o teu marido e diz-lhe que és a Virgem que ia conceber um Filho
  "nascido para carregar sobre os seus ombros o manto da Soberania, para ser
              chamado Príncipe Maravilhoso, Deus Forte, Pai Eterno". Santo Deus, que
              sorte! E agora senta-te para esperar que o teu marido diga "Aleluia, Amém,
              Aleluia", salte de alegria, te levante nos braços e te beije os olhos da
              cabeça. Ainda não tens o suficiente? Então, vai dizer à tua irmã de alma, e vê
              que a tua irmã Joana te ama mais do que o rio Jordão, mais do que o mar dos
              milagres, mais do que as montanhas de Judá. Vai, Maria, vai, corre e conta-lhe.
              Digo isto porque - independentemente da opinião de toda a gente - as semanas
              foram passando e aconteceu o que estava destinado a acontecer. Nossa Senhora
              começou a ter estranhas tonturas, ia e vinha. Era a excitação? Era o calor?
              Não, mulher, eram os sintomas típicos da gravidez. Em qualquer outra mulher do
              mundo, os seus vizinhos esperariam que um homem como um castelo, como José
              Carpinteiro, tivesse conquistado a fortaleza da virtude da noiva antes do
              casamento. De qualquer outra mulher, claro, mas da Virgem Maria, os seus
              vizinhos não podiam sequer imaginar. O facto é que, quer pudessem ou não,
              tinham de se render à evidência.
   "Que o Senhor vos dê um bebé saudável", com
              estas e outras palavras semelhantes, os vizinhos felicitaram o noivo, um José
              que não sabia do que se tratava. A verdade é que ele não a aceitou. O homem
              pensava que estava a ser abençoado antecipadamente.
   "Que seja um rapaz, e que o Senhor lho dê com saúde,
              Sr. José", continuavam os vizinhos a insinuar-lhe. O Sr. José não se
              apercebeu disso.
   De facto, algumas semanas após a Anunciação, a noiva
              começou a apresentar os sintomas clássicos das mães de primeira viagem.
              Tonturas, afrontamentos. Como se trata de algo que não se pode controlar, Nossa
              Senhora não pode deixar de ficar surpreendida. No entanto, a última coisa que
              podia fazer era fechar-se, esconder-se. Tinha de continuar com a sua vida;
              continuar com a sua vida era a melhor maneira de não afirmar nem negar uma
              palavra aos seus vizinhos. Pelo menos até decidir contar a verdade à sua mãe.
   A mãe de Nossa Senhora também demorou a apanhar o filme.
              Foi ela, à exceção de José, a última pessoa a saber do boato que começava a
              escandalizar os vizinhos.
   Aos olhos da viúva, a castidade imaculada da sua filha
              continuava tão inacessível às paixões humanas como antes do seu noivado.
              Exceptuando o acesso mais livre do noivo à casa da noiva, e essa liberdade
              condicionada à presença necessária de um parente da noiva entre ela e o noivo,
              a sua filha Maria continuava a viver a sua vida tal como era, aquela vida que
              tinha granjeado à Virgem de Nazaré a sua fama de uma ponta à outra da Galileia.
              Como podia ela suspeitar então de algo de errado com a sua filha?
   "Que o Senhor te dê o neto mais bonito do
              mundo", instigavam os vizinhos da viúva.
   "A tua Maria merece tudo; que a criança vá ter com o
              avô Jacob, que ele esteja na glória", para o caso de a Viúva não ter
              ouvido, não paravam de a provocar.
   A Viúva era de Jerusalém, tinha crescido num ambiente
              diferente. Mas não é parva. Se não se tratasse da sua filha, a Viúva teria
              apostado um braço e uma perna que a Virgem estava grávida de tantas semanas. O
              problema é que a ideia de a sua Maria estar grávida não lhe entrava na cabeça.
   A fé e a confiança da Viúva na sua filha mais velha eram
              tão grandes que os seus olhos ficaram cegos. Graças a Deus, a venda da Viúva
              caiu antes da de José. Finalmente, a Viúva teve de o admitir, embora a filha
              não o afirmasse nem negasse.
   "O que é que se passa, minha filha?", perguntou
              ela.
                   "Nada. É o calor, mãe", respondeu-lhe a filha.
                   O dilema da viúva começou quando os vizinhos começaram a
              falar de palavras grandes, por exemplo, adultério. Não lho diziam na cara, mas
              entre mulheres e vizinhas, sabe, não há necessidade de palavras. Então, a Viúva
              começou a entrar em pânico.
   "A minha Maria está em estado de graça, como é que
              isso é possível?", acaba por confessar a Viúva.
   E a sua filha da alma não o afirmava nem negava.
              Desesperada com o silêncio da filha, dirige-se ao genro para lhe pedir que lhe
              responda a esta simples pergunta: "Deve-se antecipar a data do casamento?
   E assim fez, a viúva dirigiu-se ao "seu filho"
              José. Trazer José para o assunto ia custar muito à Viúva. Sem saber em que fase
              se encontrava e qual era o seu papel na história, a viúva disse a si própria
              que tinha de envolver José sem desvendar o cerne do problema. Uma coisa muito
              estranha. O problema era levá-lo sem sair da periferia do assunto. Esperta como
              era, sem lhe dizer nada, dizia-lhe com todas as palavras o que havia, a mulher
              estava grávida, o que é que ele, o namorado, tinha a dizer?
   Depois de muito tempo a rondar o assunto, a Viúva
              apercebeu-se que ou o José estava a fazer-se de parvo, aspeto que ela
              desconhecia no santo do genro, ou que o José simplesmente não sabia nada de
              nada, e não percebia do que a sogra estava a falar.
   José olhava-a com uma naturalidade tão inocente de
              qualquer culpa que a Viúva começou a não saber onde estava. Por momentos,
              sentiu como se o chão se abrisse debaixo dos seus pés e não sabia o que era
              melhor, lutar ou deixar-se engolir. Até a sua alma se arrepiava sob o efeito do
              tremor que se insinuava nos seus ossos à medida que a verdade se tornava cada
              vez mais pesada. O genro não sabia nada de nada e tudo o que ela sabia era que
              tinha de sair daquele inferno, tinha de falar com a filha e fazer com que ela
              lhe dissesse, por amor de Deus, o que se estava a passar.
   O que é que se passava? Tinha acontecido algo
              inacreditável, algo que não se contava. Gerações e séculos inteiros seriam
              divididos em dois como o fluxo de um mar que encontra uma pedra angular
              gigantesca no seu leito. E a filha não encontrava maneira de lhe contar a
              história da Anunciação.
   Maria não encontrava o momento. Bem, um momento, se é que
              se pode chamar um momento, foi-lhe oferecido. Ela e a mãe costumavam sentar-se
              juntas a coser. Durante esse tempo, falavam e falavam. Falavam de tudo. Ou
              simplesmente ficavam em silêncio.
   Neste novo silêncio que se instalou entre mãe e filha nos
  últimos dias, dois corações estavam prestes a partir-se em pedaços. A mãe
              queria perguntar à filha: "Estás grávida, minha filha", mas não
              encontrava a resposta. A filha queria dar-lhe um "Sim, minha mãe", um
              Sim maravilhoso, divino, e não encontrava o quando.
   O facto é que o Menino estava a crescer no seu ventre,
              que a evidência do seu estado era cada vez maior, que se José descobrisse pela
              boca dos vizinhos... Ela nem queria pensar nisso.
   Ele precisava de revelar a verdade à sua mãe. A mãe era a
  única pessoa no mundo a quem ele podia confiar um Mistério tão grande. Ela
              tinha de o fazer, mas como não conseguia perceber como, nunca sabia quando.
   Foi então que, num desses dias, mãe e filha se sentaram
              frente a frente. As duas mulheres sabiam que tinha chegado a altura, que era o
              momento. A primeira a falar foi a Virgem.
                   "Mãe, acreditas que Deus pode fazer tudo?",
              exalou com ternura.
                   Filha", suspirou a Viúva, que só queria ir direta à
              pergunta: "Estás grávida, minha filha, e ela não saiu".
   "Eu sei, mãe. Dir-me-eis: Deus é nosso Senhor, como
              mediremos a força do seu Braço? E eu sou, minha mãe, a primeira a repetir as
              tuas palavras. Mas quero dizer: o seu Poder termina onde começam os limites da
              nossa imaginação, ou é precisamente do outro lado que começa a sua
              Glória?".
   "O que me queres dizer, minha filha, não te
              entendo", apanhada numa direção diferente daquela que estava desejosa de
              empreender, a mãe da Virgem articulou o melhor que pôde.
   "Não sei bem como chegar onde quero ir, nem o que
              quero dizer. Tem paciência comigo, mãe. Depois daqui vamos para o Céu e lá de
              cima as coisas da Terra não nos afectam; por isso, o que temos de fazer é
              tentar descobrir a natureza do Deus que nos chamou a sonhar com o Céu enquanto
              ainda estamos aqui na Terra. Não é verdade que Deus pode transformar pedras em
              filhos de Abraão? Mas pergunto-me se, ao falar assim, o profeta não quererá
              dizer que as nossas cabeças são duras como uma pedra. Pode uma pedra conhecer
              Deus? Qual é a diferença entre um homem que não quer conhecer Deus e uma pedra?
   "Para onde me queres levar, filha?" A Viúva, o
              melhor que pôde, conteve a sua impaciência.
   "A um acontecimento maravilhoso, mãe. Mas como não
              conheço o caminho, não te zangues comigo se eu for sozinho, como aqueles
              alpinistas que enfrentam a parede virgem pela primeira vez. A única coisa que
              me pode acontecer é cair ao pé da tua saia trespassada pela minha
              ignorância."
   "Não digas isso, filha. Não estás só, embora seja
              velho, eu sigo-te. Sim, Maria, eu sei que a glória de Deus começa onde acaba a
              imaginação do homem. Continua.
   A Virgem interrompe-se então numa direção aparentemente
              ainda mais contrária, dizendo
   "Mãe, o que é que o mensageiro te disse sobre o meu
              avô Zacarias? Porque é que ele não me quis dizer ainda? Porque é que ele não me
              mandou para casa da minha avó Isabel? Agora que podes, responde-me: o nosso
              Deus pode ou não pode fazer com que os velhos dêem à luz?
   A Viúva e José ainda não tinham querido revelar a Maria a
              natureza da mensagem que Zacarias e Isabel lhes tinham enviado recentemente; de
              facto, a Viúva tinha decidido enviar Maria até eles. A questão do estado de
              graça em que a sua filha se encontrava de repente tinha-lhe tirado tudo o resto
              da cabeça.
   De facto, o mensageiro que Zacarias e Isabel enviam a
              Nazaré descreve à Viúva e ao genro, pormenor por pormenor, o que aconteceu a
              Zacarias no Templo. Sobretudo a imagem do belo anjo que castigou a falta de fé
              de Zacarias, tirando-lhe a fala.
   A sua filha Maria descreve-lhe esse anjo como se o
              tivesse visto com os seus próprios olhos. Como é que isso é possível?
   Em princípio, era impossível. Isabel e o mensageiro de
              Zacarias não lhe falaram enquanto ela estava em Nazaré. É claro que José
              poderia ter-lhe contado.
   José tinha-lhe contado... José deu a sua palavra de que
              não seria ele a dar a notícia à sua filha. A palavra de José, sabia a Viúva,
              era pura e limpa como o ouro. Ele nunca a quebraria. Não, José também ainda não
              lhe tinha contado nada.
   Ela estava a pensar como é que a filha tinha sabido,
              quando o seu coração se voltou para a memória do dia em que a filha fez o voto
              de virgindade.
   Naqueles dias, a Viúva perguntava-se porque é que a graça
              do Senhor se tinha extinguido sobre a sua casa, porque é que lhes tinha virado
              as costas como quem abandona os despojos ao inimigo. No segredo do seu coração,
              a Viúva foi apanhada nas redes do dilema de Job. Mas, ao contrário do santo,
              não encontrou logo a resposta. Nem a encontrou nos anos que passaram desde a
              morte do marido até aos dias de hoje.
   Chegara o momento de conhecer a razão pela qual o Senhor
              tinha levado o seu marido. Espantada, absorta, fora deste mundo, flutuando
              sobre as mesmas ondas que um dia se tornaram colinas sob os pés do Espírito de
              Deus, a Viúva continua a olhar para a sua filha com os olhos fixos nas suas
              palavras.
   Depois, a Virgem muda de assunto.
                   Mãe", disse ela, "Deus não jurou que um filho
              de Eva esmagaria a cabeça da Serpente?
   "É verdade", respondeu-lhe a Viúva, a sua fala
              perdendo-se algures no infinito em que o seu olhar ficara preso.
                   "E não dizem também os nossos livros sagrados que,
              de todos os homens que já viveram à face do mundo, nunca nasceu um tão grande
              como Adão?", continuou.
   "Assim me ensinou o meu pai, e assim te ensinou o
              teu pai. Estou a ouvir-te, filha".
   Maria continuou:
                   "Quando Deus nos prometeu o nascimento de um Filho
              que carregaria sobre os seus ombros a Soberania, não estava a pensar no Campeão
              que nos iria erguer para nos libertar do império das trevas?
   "Sim, ele pensou.
                   "Mas se o Maligno derrotou uma vez o maior homem que
              o mundo já conheceu, não tinha o santo Job razão em apresentar-nos o assassino
              do nosso pai Adão diante do Trono do Todo-Poderoso, à vontade, enquanto
              esperava pelo próximo?"
   "Sim, ele estava."
                   "Claro que estava. Quem derrotou o maior homem do
              mundo, porque não há-de derrotar o seu filho?"
   A Virgem baixou os olhos e respirou enquanto enfiava a
              agulha e a linha. A mãe fica a olhar para ela sem dizer uma palavra. Passado
              algum tempo, regressa ao campo de batalha.
   "Então, mãe, diz-me tu, Deus jurou em falso? Quer
              dizer, em quem é que o Senhor estava a pensar quando fez aquele juramento
              abençoado? David ainda não era nascido, nem o nosso pai Abraão. Com o seu
              filhinho morto, o nosso pai Adão aos seus pés todo-poderosos a esvair-se em
              sangue, em que Campeão estava o nosso Deus a pensar quando nos prometeu, sob
              juramento eterno, que um filho daquela Eva esmagaria a cabeça do Maligno?
   Desta vez, foi ela que olhou para a sua mãe. Esta, ao ver
              o rosto da filha, só sabia uma coisa: que a sua filha estava grávida. A doçura
              do seu rosto, a ternura do seu discurso, o brilho dos seus olhos. Só tinha de
              lhe dizer: "Mãe, estou em estado de graça"; e em vez de ir direto ao
              assunto, sem saber como, a filha tinha-a levado ao cimo de uma montanha, de
              onde podia ver o futuro do mundo segundo a mulher que nascera para ser a Mãe do
              Messias, esse filho da Promessa que devia nascer para esmagar a cabeça do
              Maligno.
   "Em quem estava Deus a pensar no dia em que, sobre o
              sangue do seu filho Adão, jurou o nascimento do Campeão por cuja mão se
              vingaria? -repetiu a Viúva. Minha filha, não serei eu a pôr limites à glória do
              meu Criador. Só quero ouvi-la de ti.
   Lembra-te, Mãe, do que escreveu o profeta: "Uma
              Virgem dará à luz e o seu Filho será chamado Deus connosco.
   Maria olhou de novo para baixo. Depois, levantou a cabeça
              e olhou a mãe diretamente nos olhos.
   "Mãe, essa Virgem está diante de ti. Esse Menino
              está no meu ventre", confessa.
   Enquanto a filha lhe revelava o episódio da Anunciação, a
              Viúva olhava para a filha com a visão de quem contempla o Coração de Deus no
              dia do assassínio do seu filho Adão.
   No final, inspirada pelo grande amor que tinha pela
              filha, a Viúva derrama as suas bênçãos:
   "Bendito seja Deus, que escolheu a filha do meu
              marido para levar a sua salvação a todas as famílias da terra. A sua
              Omnisciência brilha como um sol inacessível, que, no entanto, todos pensam
              poder alcançar com a ponta dos dedos. Ele aperta, mas não sufoca; Ele bate, mas
              não afunda aqueles que ama. Bendito seja o Seu eleito, que Ele formou desde o
              ventre dos Seus pais para nos dar o Seu Salvador a todos os povos da
              Terra". E imediatamente disse à sua filha: "Benditas serão todas as
              famílias da terra na tua inocência, minha filha. Mas agora, Maria, farás o que
              eu te disser. Farás isto, isto e isto.
   O problema seguinte era José. José seria tratado por ela,
              a Viúva. O que a Mãe do Messias tinha de fazer era partir imediatamente em
              viagem e ficar em casa de Isabel e Zacarias até que o Senhor o ordenasse.
   E assim foi feito. A viúva pegou no genro e contou-lhe,
              ponto por ponto, toda a verdade. Não contou ao seu genro a Anunciação como quem
              tem de esconder alguma coisa e fica com a cabeça baixa de vergonha. De modo
              algum. Obviamente, com a humildade e a certeza de quem sabe que o acontecimento
              vai provocar em José um dilema angustiante, sobre o qual terá de triunfar, e
              triunfará, mas por cujo inferno terá inevitavelmente de passar.
   E triunfou.
                   No entanto, como se pode imaginar, depois da Anunciação,
              José passou muito tempo num estado de profunda depressão: o que é que tinha
              corrido mal à última da hora? Como é que uma mulher com a classe moral e a
              fortaleza de Maria se deixou enganar por...?
   Por quem? Sem que ninguém o dissesse, ela era vigiada
              durante todo o dia. Quando não estava com a mãe, estava com os sobrinhos e
              sobrinhas, quando não estava na oficina com os seus operários, estava com a
              família dos irmãos do seu pai. O Senhor tinha erigido à sua volta uma teia de
              relações tão envolvente que a própria ideia de adultério era uma ofensa.
   Depois, havia Ela, Maria. Ela era, em carne e osso, a
              melhor defesa que Deus tinha procurado para a Mãe do seu Filho.
   -Ela disse-o e nós não acreditámos: "Uma virgem
              conceberá e dará à luz um filho", dizendo isto José viu a luz e fugiu.
              Voltou para a sua mulher, o casamento realizou-se e toda a gente esqueceu o
              incidente.
   No entanto, ficou uma recordação. Digo isto por causa do
              outro incidente entre Jesus e os fariseus.
                   Os fariseus e os saduceus estavam fartos de ouvir dizer
              que Jesus de Nazaré era o Filho de David. Sem saberem como deitar-lhe a mão,
              investigaram o seu passado. Puseram o dedo na ferida e descobriram aquele
              estranho incidente do desaparecimento da mãe durante os primeiros meses de
              gravidez, e como José foi pessoalmente procurá-la... para ....
   -Ahhhh, aqui está o seu calcanhar de Aquiles.
                   Com esta arma secreta na manga, os fariseus levam Jesus
              ao tema do direito de primogenitura, unigenituras. Então, um deles sacou do
              manual de golpes baixos e lançou a bomba.
   -O nosso pai é Abraão, quem é o vosso?
                   O zelo de Jesus pela sua Mãe subiu-lhe à cabeça.
                   -Vós sois filhos do Demónio", responde com a força
              de um furacão comprimido na garganta.
   Só noutra altura, só noutra altura que eles não quereriam
              recordar, é que veriam o filho da Virgem a disparar raios pelos olhos. E Ele
              nunca pararia, nunca pararia até que a Sua raiva tivesse sido saciada até ao
  último átomo de fúria.
   De agora em diante, o jogo entre Ele e eles seria um jogo
              de cara ou coroa. Cara, Ele levá-los-ia perante Ele. Coroa, eles levariam os
              deles.
   
               O MENINO JESUS EM ALEXANDRIA DO NILO
                   
               Pouco depois, José, o Carpinteiro, e o
              seu cunhado Cléofas pegaram nas suas famílias, arranjaram bilhetes e partiram
              para Alexandria do Nilo.
   Esta questão da fuga foi sempre um
              mistério. Em termos documentais, a verdade é que não há qualquer indicação de
              que Alexandria do Nilo tenha sido o local escolhido por José para salvar o
              filho de Maria da perseguição contra ele decretada por Herodes. Assim, se me
              pressionarem, o autor da História pode ser acusado de inventar o destino dos
              fugitivos para satisfazer necessidades literárias. O que me parece lógico, até
              certo ponto. Eu próprio não posso esquecer que a iconografia clássica sobre o
              assunto é bastante escassa, até prudente, diria eu; e atrever-me-ia mesmo a
              confessar que é uma prudência que raia a cobardia.
   A escolha de Alexandria do Nilo não foi
              fortuita da parte de José; nem é fortuita da parte daqueles que recriam os seus
              movimentos nestas páginas. Felizmente ou infelizmente, a única prova que posso
              trazer é o testemunho de Deus sobre o caso. Infelizmente é uma figura de
              estilo, claro. Para aqueles que conhecem Deus, uma única palavra sua vale mais
              do que todos os discursos de todos os sábios do universo reunidos no meio de
              intermináveis dissertações. Infelizmente, a palavra de Deus não vale a palavra
              de Deus para toda a gente.
   O facto é que a única prova real que a
              história nos dá neste caso é o testemunho de Deus, que "do Egipto chamei o
              meu filho".
   Muitos foram os que, antes de mim,
              puseram as mãos no fogo para defender a resposta afirmativa que a pergunta
              merece. Das distâncias apócrifas do incrédulo, porém, duas são as objecções
              invencíveis contra cujas paredes à prova de bomba a nossa retórica se abate.
              Uma é que O Egipto a que chamei meu Filho foi escrito muito antes de qualquer
              dos acontecimentos que narramos ter tido lugar, de modo que parar para
              acreditar que, séculos e séculos antes do Nascimento, o Voo já tinha sido
              configurado para entrar no programa messiânico é, na verdade, acreditar demais.
   A outra objeção é que esta nota de
              previsão não foi escrita "a futuriori" mas a posteriori. Segundo
              estes génios, não seria a primeira vez que os judeus falsificariam os seus
              textos sagrados. Não o teriam feito durante séculos? Nínive cairia e eles
              viriam escrever nas suas ruínas que já o tinham dito. E como Nínive, todas as
              outras coisas. O profeta Daniel viu também a chegada ao poder de Ciro, o
              Grande. E até a queda do seu império sob os cascos do cavalo de Alexandre
              Magno. Por amor de Deus, a quem queriam eles enganar? Haverá nação mais
              insensata do que aquela que se engana a si própria?
   Seja como for, esta postura de criar
              textos proféticos a posteriori ganhou muitos adeptos nos seus tempos de glória.
              Passando ao lado da sua esperteza, como é natural para aqueles que foram
              imunizados contra a esperteza do génio, os outros, aqueles de entre nós que
              ainda mantêm o valor divino dos textos proféticos, continuam a sustentar que
              tais modos de pensar seriam lógicos num pensador antigo, porque pretender
              ajustar o pensamento do Criador ao da criatura, que é o que se faz ao negar a
              omnisciência divina como fonte das Escrituras, é negar aquilo que separa a
              criatura do seu Criador.
   Ao nível do concurso, é verdade que
              alguns homens vêem o futuro. Nas estrelas, nos dados, nas borras de café e,
              sobretudo, numa bala com um nome escrito. No plano da realidade, a confissão da
              natureza humana está longe de se atribuir tal atributo.
   Isto, por um lado.
                   Por outro lado, não é verdade que a
              história é escrita pelos vencedores? Pois bem, se assim é, alguma coisa deve
              estar errada com o sistema quando a vemos ser escrita por um povo de vencidos.
              Perderam com os egípcios, ou alguém ainda acredita que se pode passar da
              liberdade à escravatura sem travar uma batalha terrível? Lutaram contra os
              assírios e perderam a guerra. Foram novamente esmagados pelos caldeus de
              Nabucodonosor. Perderam para Roma. Curioso, muito curioso, que a memória
              histórica de metade do planeta se baseie nas proezas bélicas do povo perdedor
              por excelência, os judeus!
   Eu diria que a história se escreve a si
              própria quando Deus usa a mão do homem como caneta. Ele molha a caneta no nosso
              sangue e escreve o nosso futuro segundo a sua clarividência, a sua
              omnisciência, a sua presciência e o seu génio criador. Por outras palavras, nós
              não vemos o futuro, mas Deus não só o vê como também o escreve. Ora, se esta
              capacidade divina de criar o Futuro não for admitida, então teremos de aceitar
              a natureza dos próprios acontecimentos, ou correremos o risco de fechar esta
              História e abrir um livro totalmente diferente.
   Assim, a despedida foi muito breve. O
              Lobo do Diabo tinha cheirado o Menino.
                   Seguro no Egipto, José, o Carpinteiro,
              abriu a sua oficina longe do bairro judeu, na Cidade Livre. Com o passar dos
              anos, a sua oficina passou a chamar-se A Carpintaria do Judeu.
                   Sobre este ponto - o acontecimento da
              Matança dos Inocentes - digo a mesma coisa. Se a dúvida se baseia na
              impossibilidade da existência de alguém capaz de cometer tal crime, então
              podemos pegar na dúvida e deitá-la fora. Se, pelo contrário, for na ignorância
              dos povos e das suas gentes, falando das circunstâncias sociais e políticas
              vividas pelo reino de Israel na altura, neste caso nada se pode acrescentar ao
              que foi escrito, talvez apenas dizer que não se explica como é que, com a
              felicidade na ignorância e com tanta gente ignorante no mundo, o mundo pode
              continuar a ser tão brilhantemente miserável.
   Mas voltemos à questão.
                   Terá sido uma decisão fácil para José ter
              de voltar a fazer as malas e emigrar para o Egipto?
                   Talvez não tenha sido uma decisão fácil,
              mas foi uma decisão corajosa.
   A história da Adoração dos Magos abre-nos
              a mente para o passado e retrata a fuga da Sagrada Família para a segunda maior
              cidade do mundo, Alexandria, no Nilo, uma cidade aberta e cosmopolita onde José
              e a sua família chegaram com as costas cobertas financeiramente. Ouro, incenso
              e mirra foram os presentes que os Magos lhe deram.
   Porquê Alexandria do Nilo e não Roma?
                   Bem, Alexandria estava a um passo das
              costas de Israel. Consumada a matança dos inocentes, consumado o assassinato de
              Zacarias, pai do Batista, a última coisa que José podia fazer era pôr em perigo
              a vida do Menino. De facto, entre o momento da Natividade e a sua apresentação
              no Templo, os dias tinham passado; era então ou nunca. Regressar a Nazaré,
              fazer as malas, apanhar o barco para Haifa e dizer adeus à pátria.
   Esta decisão de José, forçada por
              circunstâncias sangrentas, mudou o homem de uma forma total. Entre os Santos
              Inocentes, os filhos dos seus irmãos caíram na armadilha. O homem que, do
              convés do navio que transportava a Sagrada Família para Alexandria, olhava para
              o horizonte, sozinho, de costas para todos, trazia escondido no peito aquele
              segredo, que só descobriria ao seu povo com a morte. Quando desembarcou na
              costa egípcia, o José de Antes da Matança e o assassinato de Zacarias tinham-se
              afundado nas águas do Mediterrâneo.
   Os seus compatriotas?
                   Quanto mais longe dele, melhor. A razão
              desta mudança total não a revelou a ninguém, nem à mulher nem ao cunhado.
   E eis-nos aqui, na Alexandria do Nilo.
                   O ambiente em que Jesus cresceu, graças
              ao estranho comportamento do pai em relação ao seu próprio povo, foi
              extraordinário. José, seu pai, recusa-se a instalar-se no bairro judeu; prefere
              procurar um lugar entre os gentios, no coração da Cidade Livre. Compra uma casa
              e abre a sua oficina. Com o tempo, a sua loja ficou conhecida como a Carpintaria
              do Judeu.
   Os tios do Menino, Cleofas e Maria de
              Cleofas, continuaram a trazer crianças ao mundo.
   Esperto como era, assim que Jesus apanhou
              o seu primo Tiago, apesar de Tiago ser dois anos mais velho do que ele, Jesus
              pegou nele e levou-o para o porto romano. O Rapaz não deixa ninguém para trás;
              a sua sede de notícias do Império nunca foi saciada. A sua inteligência, ao
              trazer aos marinheiros notícias de Roma, de Atenas, da Hispânia, da Gália, da
  Índia, da África profunda, despertava a simpatia dos cães do mar. Olharam as
              duas crianças de alto a baixo, viram-nas vestidas com roupas de crianças da classe
              alta e lá disseram a Jesus e ao seu primo Tiago como ia o mundo.
   Graças a essa naturalidade, aos doze anos
              o Menino falava perfeitamente latim, grego, egípcio, hebraico e aramaico.
              Insisto: ou achas que lhe arranjaram um intérprete para a audiência com
              Pilatos?
   Por outras palavras, Jesus era um menino
              prodígio em todos os sentidos. Uma criança prodígio que teve a sorte de ter
              como pai um homem extraordinário. No entanto, os fenómenos também sentem,
              sofrem, têm momentos de fraqueza, entristecem-se, choram a solidão que os
              invade.
   
               A POMBA MUDA DAS TERRAS LONGÍNQUAS
                   
               Jesus afundou-se. Esse Menino divino que
              virou do avesso as crianças de toda a rua, que se foi embora, que se perdeu
              entre os barcos do porto e que voltou a correr para se sentar ao colo do pai
              entre os seus amigos à noite, esse terramoto de Menino afundou-se. Jesus deixou
              de sair de casa. Começou a sentar-se à porta da carpintaria do judeu, a ver a
              vida passar. O Menino quase não come. Jesus caía ao colo da mãe entre as
              amigas, quando à noite as mulheres se sentavam na rua, sob o céu mediterrânico,
              a coser, a conversar, e ele ia-se embora.
   Era como se aquela chama de La Zarza
              estivesse a arder nos braços de Maria. A princípio, ela não se apercebeu da
              solidão que tinha aberto um buraco negro no peito do seu filho e que o engolia
              um pouco mais a cada dia. Pouco a pouco, a mãe abriu os olhos e começou a ver o
              que estava no coração do seu filho.
   Ela não podia sofrer a agonia
              indescritível que lhe estava a tirar o seu Filho das mãos. Ela amava-o mais do
              que o mundo, mais do que o tempo, mais do que as ondas do mar, mais do que as
              estrelas, mais do que o amor, mais do que a sua própria vida. E ele estava a
              deixá-la. Era noite após noite e cada noite um pouco mais. O Menino não falava,
              não ria, deixava-se cair sobre o peito da Mãe, com os olhos perdidos no céu
              daquela Alexandria do Nilo, e ali se afundava.
   O que é que se passa, meu filho?",
              perguntou-lhe ela.
                   -Nada, Maria", respondeu ele.
                   -Eu sei o que se passa contigo, menino
              Jesus.
                   -Não é nada, Maria, a sério.
                   -Meu querido, tens saudades do teu Pai.
              Não chores, minha querida. Ele está aqui, agora mesmo, quando ponho os meus
              lábios nas tuas faces, Ele beija-te, quando te abraço, Ele aperta-te.
   Para o Menino, aquela mulher que o
              escutava com o sorriso mais doce do universo no rosto enquanto Ele lhe falava
              do Paraíso do seu Pai, da Cidade do seu Pai, dos seus irmãos, os super anjos
              Gabriel, Miguel e Rafael, aquela mulher... aquela mulher era a sua Mãe. Ele
              amava-a mais do que qualquer outra coisa no mundo. Ela era a única pessoa a
              quem ele podia contar tudo. Ele gostava de sentir o bater do seu coração quando
              ela lhe falava do seu Reino, e aquele olhar luminoso que iluminava o seu rosto
              quando ela lhe contava toda a verdade! Nunca mais se apagou da sua memória.
   Sim, Maria", disse-lhe o Menino. Eu
              sou Ele.
                   -Diz-me outra vez como é o Céu, minha
              filha. Ela perguntou-lhe de novo.
                   -O Céu", disse o Menino, "é
              como uma ilha que se tornou continente e continua a crescer do outro lado dos
              seus horizontes. A Rocha sobre a qual assenta os seus alicerces é o Monte mais
              alto que qualquer homem pode imaginar. O monte de Deus, Sião, eleva o seu cume
              até às nuvens, mas onde deveriam estar as nuvens há doze muralhas, cada uma de
              um só bloco, cada bloco de uma só cor, cada muralha brilhando como se tivesse
              um sol dentro de si. E são como doze sóis que iluminam o mesmo firmamento. As
              doze muralhas são uma só muralha que envolve a Cidade que elas contêm. Deus
              chamou à sua cidade Jerusalém e ao seu monte Sião. Em Jerusalém os deuses têm a
              sua morada, e entre os deuses meu Pai tem a sua casa. A partir dos muros da
              cidade de Deus, os confins do Céu perdem-se no horizonte que delimita o orto,
              do outro lado das fronteiras do Paraíso.
   Como vêem, o Céu é como um espelho
              maravilhoso que reflecte a História dos povos que o habitam. Por exemplo, este
              mundo, a Terra. Vocês registam as memórias dos vossos antepassados nos vossos
              livros; mas o Céu regista-as ao vivo, porque o que se reflecte na superfície do
              Universo materializa-se na superfície do Céu. Assim, se fores à Morada dos
              homens, no Paraíso de meu Pai, verás que todas as Idades do Homem estão
              registadas na sua geografia. Quando fores ao Céu, verás com os teus olhos que
              todos os tipos de animais e pássaros e árvores e plantas e montanhas e vales
              que já estiveram aqui em baixo existem para sempre lá em cima.
   Como o meu Pai criou outros Mundos, e
              continuará a criar mais, o Céu é um Paraíso cheio de maravilhas que nunca
              acabam. Para o percorrer, terias de caminhar uma eternidade, e cada passo seria
              uma aventura. Como te explico isto? O meu Pai semeia a vida nas estrelas. As
              estrelas do Universo são como o oceano que rodeia a ilha, e também este oceano
              de constelações cresce, estendendo as suas margens ao ritmo das fronteiras do
              Céu. A vida faz-se árvore, e eu e o meu Pai recolhemo-la no nosso Paraíso para
              viver para sempre. As espécies de animais e de aves são inumeráveis. Um grande
              rio nasce nas alturas do Monte de Deus e divide-se na planície em ramos que
              cobrem todos os Mundos e os seus territórios. Vês todas as estrelas? O céu é
              mais alto.
   -De lá vieste, meu filho?
                   Eu digo-te, Maria.
                   
               A CARPINTARIA DO JUDEU
                    
                   O Menino disse muitas coisas a Maria.
              Disse-lhe tantas que a pobre mulher imigrante já não tinha espaço na sua cabeça
              e teve de começar a guardá-las no seu coração. Se eu vos dissesse todas,
              provavelmente ficaria aqui sentado até ao próximo ano, e não é esse o plano.
   O que vos posso dizer é o que já sabem.
              Sabeis que a Sagrada Família regressou à sua terra natal quando tinha dez anos
              ou mais. Mas não sabem o que lhes aconteceu para que o bom José e o seu cunhado
              Cléofas tomassem a decisão de vender a Carpintaria do Judeu, um negócio muito
              próspero, a todo o vapor e a toda a velocidade, cortando o mar, não navegando,
              voando, etc.
   A Carpintaria do Judeu ficava no meio da
              Cidade. Naquele tempo, só havia uma verdadeira cidade em todo o mundo. Era
              Alexandria do Nilo. Roma era o maior quartel-general militar do mundo. Em Roma
              viviam os senadores imperiais. Mas era em Alexandria do Nilo que se encontravam
              todos os sábios do Império. Podemos dizer que Alexandria era a Nova Iorque de
              então. Em Washington está o poder, mas em Nova Iorque está o dinheiro. Era uma
              relação desta natureza que Alexandria tinha com Roma.
   E quando os negócios lhes corriam tão
              bem, o mar não navega, voa, etc. Voltar para quê? Para sobreviver como a mosca
              na casa da aranha? Há que refletir. Uma empresa com menos de dez anos é como um
              rapaz que começa a deixar crescer o bigode. É a partir dos seus olhos que os
              defeitos do mundo são menos evidentes. O mundo pode ser tão mau quanto se
              queira, mas ele, o miúdo, é um campeão. De qualquer modo, não se trata de um
              disparate. Tinha sido difícil para José e para o seu cunhado progredirem,
              abrirem caminho, encontrarem um lugar, e um grande lugar entre os gentios,
              porque José pouco ou nada queria com os seus compatriotas. Neste capítulo, o
              Sr. José era um judeu muito estranho. Não queria saber muito dos seus
              compatriotas, nem gostava de os ter muito perto de si. Ninguém sabia porquê,
              nem falava muito. Deve ser porque o Sr. José falava latim e grego desde muito
              novo e parecia encontrar-se entre os gentios como um peixe na água.
   É preciso dizer que o facto de Joseph
              dominar as duas línguas do Império lhe abriu caminho no mundo dos negócios. Ao
              contrário dos seus compatriotas, racistas com toda a gente, que se consideravam
              uma raça superior e eleita e desprezavam o resto da humanidade, José era
              aberto, inteligente, não muito falador, mas cada palavra sua era a de um homem
              adulto que não faltaria à sua palavra por nada deste mundo.
   Como é que um carpinteiro e marceneiro de
              província, fugido de uma aldeia perdida nas serras, tinha conseguido dominar a
              tal ponto as duas línguas internacionais da época era, na verdade, outro
              mistério!
   Mais um entre os muitos que faziam do
              dono da Carpintaria do Judeu uma criatura sui generis, introvertida,
              indefinível. Os seus compatriotas de Alexandria criticavam José precisamente
              por causa do seu afastamento da companhia do seu próprio povo.
   Ao contrário de José, Cléofas, o irmão de
              Maria, era muito da sua terra e estava muito na companhia do seu povo. Este
              facto equilibrava a balança e mantinha as relações da Casa com os nacionalistas
              num patamar de equilíbrio. Por vezes, entre cunhados e sócios, Cleofás aborda o
              tema do seu afastamento e as razões da sua posição inabalável. Mas José
              arranjava sempre maneira de arrastar os pés.
   José não estava a impor nada ao cunhado
              Cleofás; este era livre de educar os filhos segundo o seu coração; não
              proibiria os seus filhos de irem à sinagoga e de participarem na vida da
              comunidade judaica, cumprindo os seus deveres de bom filho de Abraão. Só que a
              mesma liberdade que José lhe oferecia, queria-a para si.
   Cleofas riu-se desta forma de raciocínio
              e abandonou o assunto. Porque se perguntasse à sua irmã Maria sobre o estranho
              comportamento do marido, ela não iria mais longe.
   A mesma perplexidade que o comportamento
              de José causava a Cléofas tinha deixado Maria admirada desde que tinham deixado
              a sua terra natal. E Cleofas não podia acreditar que ela lhe estivesse a
              esconder alguma coisa. José era tão bom como um pão, mas quando se tratava de
              abrir o coração, não dizia uma palavra à sua própria mulher.
   Na altura deste capítulo, Cleofas e a sua
              mulher já tinham dado à luz uma tropa inteira. José e Maria, porém, tinham
              conservado o primeiro e o último, o primogénito e o unigénito, numa só pessoa.
   -O que é que se passa, irmão?", quis
              saber Cleofas, "porque é que tens tanta pressa em vender um barco que vai
              tão depressa?
   José não queria contar toda a verdade ao
              cunhado, ou pelo menos a verdade tal como ele a vivia.
                   
               O REGRESSO A NAZARÉ
                   
               O Menino venceu a tristeza que estava a ponto
              de o mergulhar nas trevas da dor infinita. A sua Mãe colocou-se entre o Menino
              e essas trevas incognoscíveis, chamou o marido em seu auxílio e, entre eles,
              expulsaram o demónio do inferno. Mas ainda não tinham esquecido a batalha
              quando o Menino abriu um novo capítulo nas suas vidas. Jesus tinha já nove ou
              dez anos. Tinha passado pela cabeça do Menino deixar o Egipto e ser levado para
              Israel.
   Compreende-se que José esteja muito
              zangado. A sua mulher era pelo seu filho. É lógico. Para Maria não há problema.
              Mas para José as coisas não eram assim tão simples.
   É claro que José tinha ouvido a história
              divina dos lábios de Jesus nos braços da sua Mãe. E é precisamente por isso
              que, agora mais do que nunca, não podia dar-se ao luxo de tomar uma decisão
              errada. Enquanto não sabia quem tinha em casa, o problema parecia-lhe estar sob
              controlo; mas agora que conhecia a identidade do Filho de Maria, não podia
              dar-se ao luxo de hesitar mais do que nunca, quando se riu um pouco do conselho
              dos Magos.
   "Vai, José, ou os Herodes
              matá-lo-ão", suplicavam eles.
   Regressar a Israel enquanto Herodes, o
              filho, estiver vivo?
                   -José respondeu à sua mulher: "Diz
              ao teu filho que ainda não chegou o momento".
   Palavras que se foram com o vento.
                   -Diz ao teu marido que tenho de ir tratar
              dos assuntos do meu Pai, insistiu o Menino.
                   A resposta que o vento trouxe.
                   -Maria, pelo amor de Deus, ele é uma
              criança. Daqui ninguém sai. Pelo menos até esse filho de Satanás morrer.
   Eu fecho e corto. O Sr. José era assim.
              Muito poucas palavras, mas quando as dizia, não havia ninguém no mundo que o
              conseguisse fazer ceder.
   E podiam ter ficado assim toda a vida se
              o Menino não tivesse posto o seu plano em ação. Não vou perder-me em
              pormenores, mas o que é certo é que o filho do Carpinteiro abriu a garrafa da
              sua inteligência prodigiosa e divertiu-se como uma criança, fazendo com que o
              rabino da sua sinagoga se perdesse no champanhe da sua glória.
   -A lista dos reis? A de antes do dilúvio
              ou a de depois do dilúvio, senhor rabino?
   Um monstro. Ele sabia tudo. O rabino,
              estupefacto, acaba por se interessar profundamente pela criança.
   -E de quem és filho, criança?
                   -Sou filho de David, rabino.
                   -O teu pai é filho de David?
                   -E a minha mãe também, rabino.
                   -E a tua mãe também? Que coisa curiosa!
                   -E o meu primo aqui também, Rabino.
                   "É um verdadeiro rabino",
              pensou o homem para si próprio.
   Um dia, o rabino entrou na carpintaria do
              judeu e pediu a José que se explicasse. Como se tivesse direito a alguma coisa
              por ser um servo dos servos de Deus.
   José olhou-o de alto a baixo e mandou-o
              para a rua. E à frente do próprio Menino. Porque, claro, toda a confusão era
              obra da criança.
   Compreende-se que, após o choque do
              nascimento, José tenha sido proibido de mencionar em sua casa as origens
              davídicas da sua família. E, se fosse caso disso, as suas origens davídicas
              deviam ser evitadas, como quem não está disposto a pôr a mão no fogo. Sim,
              eram; mas quem diria, os pais disseram-lhes que eram, e eles não iam contestar
              a autoridade dos pais.
   O Rapaz estava a violar esta lei da
              Família. E estava a fazê-lo com perfeito conhecimento de causa. Ele sabia,
              porque conhecia José como se fosse seu irmão, seu amigo, seu pai, que assim que
              José detectasse o menor perigo que pusesse em risco a vida do Filho de Maria,
              José fecharia a loja e emigraria para outro lugar.
   José tinha sobrevivido ao primeiro
              assalto. Mas o segundo ainda estava para vir.
                   O Menino estava de volta ao ativo. Não só
              era filho de David, como a sua mãe era a Filha de Salomão.
   -Sim, Sr. Rabino. A própria Filha de
              Salomão.
   E dizeis que o vosso pai pode prová-lo
              com papéis sobre a mesa?
   -Sim, senhor.
                   O rabino que teve a sorte ou o azar de o
              ter como aluno ficou com as antenas rígidas. Confuso, perdido, o rabino atónito
              levou o assunto ao rabino chefe.
   -O que vos digo", disse ele,
  "se fosse outra criança qualquer, eu levaria na brincadeira, mas acredito
              em tudo o que diz respeito ao filho do Carpinteiro. Ele sabe mais do que todos
              os sábios da corte de Salomão juntos. Incluindo o rei sábio - com estas
              palavras, o rabino de Jesus foi ter com o seu patrão.
   E um belo dia, ambos apareceram na
              carpintaria do judeu, dispostos a ir ao fundo da questão.
   Foram ter com José. Foram exigir que ele
              lhes mostrasse os documentos de que o Menino lhes tinha falado. Jesus tinha-lhes
              dito que o pai guardava os documentos genealógicos da Família, documentos que
              remontavam aos dias do próprio rei David, reeditados pelo profeta Daniel
              durante os dias do cativeiro babilónico.
   José viu-se subitamente confrontado com
              uma jogada de xeque-mate magistral. O Filho de Maria estava a jogar duro.
              Queria levá-los a todos para Jerusalém e nada nem ninguém o ia impedir.
   A discussão que José teve com os dois
              rabinos foi muito forte. Não vou tentar reproduzi-la para não dar a impressão
              de que estou a recordar acontecimentos fantásticos.
   -A impressão que o Filho de Maria causou
              aos seus mestres foi tão grande que eles deram fé à palavra de um rapazinho...
              blablabla. O Carpinteiro disse-lhes: "Vou dizer-vos a verdade", disse
              ele.
   Se eles o conhecessem, teriam
              compreendido que para José afirmar era dizer a última palavra.
   José é muito claro. O Filho de Maria
              podia ser o próprio Filho de Deus, mas cabia-lhe a ele, a José, a quem o Pai
              tinha dado a sua Custódia, e cabia-lhe a ele, e só a ele, José, decidir quando
  é que a Sagrada Família regressaria a Israel.
   Será que é o Filho de Deus?
                   Será que só pode ser...?
                   "Em que estás a pensar, José?"
                   Os rabinos pensavam que tinham o
              Carpinteiro encurralado, e até o próprio Menino, que escutava atrás da porta,
              chegou a acreditar. As palavras cruzavam-se como espadas num duelo até à morte,
              quando o Menino se inclina para fora da porta com o ar do vencedor que pergunta
              ao seu inimigo caído: "Ainda queres mais?
   É a primeira vez na sua vida que José vê
              o Filho de Maria com os olhos com que a sua Mãe o viu. Era o Filho de Deus em
              pessoa. Não era uma brincadeira. Ele tinha apenas o corpo de uma criança. Mas
              aquele que estava diante dele era o Primogénito de Deus.
   E era Ele em pessoa que lhe estava a
              falar em pensamento.
                   Sim senhor, Ele falava-lhe em pensamento
              com a certeza de que você está a ler este livro.
   José estava a ser falado pelos rabinos em
              público, na sua própria casa, e a sua mente estava noutro lugar, noutro lugar.
              Eles exigiam os documentos genealógicos do Menino e ele estava noutro lugar,
              noutro tempo. O Menino estava encostado à auréola da porta do Carpinteiro,
              dizendo-lhe sem abrir a boca: "Ainda não acreditas em mim, José, não vês
              que tenho de tratar das coisas do meu Pai?
   Mas o truque saiu-lhe pela culatra.
                   Passado o momento, os rabinos foram-se
              embora, de novo, e agora mais do que antes, José fechou-se sobre eles. Nunca
              mais voltariam a Israel até que o seu Deus lhe desse ordem para regressar. E
              pronto, não ouviria mais nada.
   E foi assim que o Menino foi novamente
              derrotado. Deixou de falar com José. Tinha jogado o jogo e tinha-o perdido.
              Ninguém sairia do Egipto até que Deus desse a José a ordem de regressar a
              Israel, tão simples como isso, tão trágico como isso.
   Simples de dizer, sim; simples de viver,
              mas em vão. Pai e filho deixaram de se falar, deixaram até de se olhar. Jesus
              nem sequer comeu. Deixou-se cair no chão, encostado à fachada da sua casa, a
              ver a vida passar, dominado pela tristeza de quem tudo pode e nada pode.
   Maria não sabia quem estava a sofrer
              mais. Se era o filho, por não ter conseguido impor a sua vontade, ou o marido,
              por não ter conseguido sofrer o silêncio e o afastamento do filho. Nem sequer
              se olhavam. José não se atreve, e o Menino não pode.
   Cleofas era o único que parecia
              divertir-se com a situação.
   -O que é que se passa, irmão, porque é
              que és tão teimoso?
   -É apenas uma criança, Cléofas",
              respondeu José.
   E aconteceu que um dia José voltou para
              casa depois de um negócio. Jesus já tinha perdido toda a esperança de convencer
              o bom e velho José. Há quanto tempo não se falavam?
   José, o Carpinteiro, regressou do negócio
              todo sério, mas com os olhos muito brilhantes. Assim que Maria o viu entrar
              pela porta, o seu coração acelerou, mas não quis dizer nada. Esperou que o
              marido falasse com ela.
   -Mulher, diz ao teu filho que vamos
              embora.
                   Ela não disse mais nada.
                   A mãe pega no filho e vai distraí-lo ao
              mercado. Vai comprar-lhe tudo o que ele quiser, para o animar e levantar os
              olhos, diz ela. Jesus segue-a como se seguisse uma nuvem sem destino. Desde o
              incidente entre José e os rabinos, não queria ter nada a ver com nada, não
              desejava nada. E não há nada que a sua própria mãe possa dizer para o animar.
   Nada?
                   Bem, havia uma coisa. Ela tinha dois
              sinais, e era uma só palavra. José recusou e Maria não lha podia dar.
   Não lha podia dar?
                   Nunca esqueceriam aquele passeio pelo
              mercado do porto de Alexandria. Ela sorria para ele, fazia-lhe cócegas,
              dizia-lhe com os seus gestos: Adivinha, o que é que eu tenho?
   Naturalmente, o Menino ficou aborrecido
              durante algum tempo, até que finalmente abriu os olhos. Pegou na Maria -
              tratava-a sempre pelo nome - sentou-a num dos bancos do cais e, olhando-a nos
              olhos, leu-lhe o coração com a mesma facilidade com que se lêem estas linhas.
   -Maria, sim", foi tudo o que o rapaz
              lhe perguntou.
                   Ela abanou a cabeça, morta de contente. E
              ali mesmo, no horizonte do Mediterrâneo, dançaram loucamente de alegria.
   Apressam-se a chegar a casa. José estava
              a trabalhar quando entraram. Maria passa por eles, mas José capta a luz que
              brilha no coração da mulher. As pupilas dela iluminam-se e ela vira a cabeça.
              Antes que ele pudesse dizer uma palavra, o Menino saiu a correr e atirou-se-lhe
              para os braços. Gigante como era, o marido de Maria apanhou-o e levantou-o como
              todos os pais fazem com os filhos. Agora, ambos tinham ganho. O Menino tinha o
              que queria e José tinha recebido a ordem de Deus para se pôr a caminho.
   Cléofas não recusou. Nem disse nada. O
              cunhado é o chefe do clã, é ele que manda, é ele que comanda.
   Jesus sai a correr à procura de Tiago, o
              seu primo, gritando pela rua fora: Para Jerusalém, Tiago, para Jerusalém.
   
               RENASCIDOS
                   
               Os emigrantes regressam a Nazaré, por
              assim dizer, ricos. José vendeu a carpintaria do judeu por um preço muito bom.
   Adeus Alexandria, adeus - murmuravam os
              lábios de um José que deixava para trás amigos, negócios, anos felizes, novas
              perspectivas, uma cidade sábia, a alegria de ter vivido coisas maravilhosas e
              ouvido outras incríveis que não poderia acreditar se não as tivesse ouvido dos
              lábios do Menino.
   Do outro lado do horizonte, aguardava-o o
              regresso da dor adormecida sob os grossos lençóis de um subconsciente
              cruelmente ferido. Regressar a Nazaré, instalar-se em Belém, a sua aldeia, o
              que faria?
   Durante a ausência da dona da cegonha de
              Nazaré, a casa grande da colina, Joana, irmã de Maria, tinha guardado a herança
              do seu sobrinho Jesus. Para esse lugar, José não tinha qualquer problema. Tudo
              o que pertencia à sua mulher era dele; assim, José podia viver dos rendimentos
              e começar a viver a boa vida. Mas por muito próspera que fosse a herança da
              mulher, esta forma de pensar não lhe convinha.
   Como pai, José estava mais preocupado com
              o futuro do seu filho Jesus do que com o futuro dos seus sobrinhos e sobrinhas.
                   Nessa altura, o seu cunhado Cléofas já
              tinha trazido ao mundo uma tropa. Se a sua irmã Maria tivesse permanecido
              solteira, teria sido mais do que provável que a herança de Jacob de Nazaré e o
              seu legado messiânico tivessem passado para o varão da casa; nesse caso, o
              futuro dos filhos de Cléofas estaria ligado ao dos bens de Maria.
   Não era esse o caso. Mais cedo ou mais
              tarde, os filhos de Cléofas teriam de deixar a casa de Tita Maria,
              estabelecer-se e fundar as suas próprias famílias. Assim, sem pensar duas
              vezes, José toma a decisão final de recomeçar, como da primeira vez que chegou
              a Nazaré, desconhecido de todos os que não o conheciam, sem chão onde cair
              morto, o céu como teto, os horizontes como paredes da sua casa, a terra-mãe
              como chão onde deitar o corpo, uma pedra de almofada sob as estrelas, os seus
              fiéis cães assírios de guarda à volta da fogueira, a aurora ao nascer do dia, a
              estrela da manhã sob a lua, Jerusalém acima, a caminho de Samaria como quem
              entra num corpo e viaja até ao coração através das artérias desconhecidas da
              terra. Porque não, não nos dotou Deus da sua força para manter o espírito
              sempre jovem? A força deve falhar, mas o desejo continua para além do cansaço
              dos ossos.
   Claro que reabrir a carpintaria ia ser um
              trabalho sério, mas como aqueles dois homens não tinham nem força nem coragem
              para recomeçar do zero, era isso. Além disso, os seres tenebrosos que tinham
              ordenado a Matança dos Inocentes já tinham morrido e, verdade seja dita, embora
              José não parecesse muito ansioso por regressar à sua terra natal, também ele
              estava desejoso de rever os seus irmãos e irmãs, de ver a sua mulher e o seu
              cunhado felizes nos braços da mãe. Em suma, a natureza humana foi tecida com
              fibras de amor divino e precisa de se banhar em lágrimas de alegria para
              ultrapassar a tendência inata que manifesta para se assemelhar aos animais, que
              não riem nem choram.
   Quanto ao trabalho, José poderia ter-se
              dedicado à agricultura, mas não era o seu género. O ofício de carpinteiro
              estava-lhe nos genes, latejava-lhe no sangue; era a sua praia, era capaz de
              martelar um prego sem olhar, de polir a superfície mais áspera enquanto falava.
              O campo? O campo não era para ele, nem ele tinha sido feito para o campo. Será
              que as artimanhas da cunhada Juana para manter a propriedade em alta tinham
              desaparecido?
   Sim, para os assuntos do campo havia a
              cunhada Juana. E quanto à oficina de costura da Nazaré, o assunto estava nas
              mãos dos trabalhadores da mulher, e esta, já dedicada à família, a primeira
              coisa que fez foi deixar as coisas como estavam.
   O Menino, por seu lado, mal tinha posto
              os pés em Israel e já estava ansioso por ver chegar o dia da sua admissão na
              comunidade com plenos direitos de adulto, o que normalmente acontecia aos treze
              ou catorze anos. No seu caso, as coisas foram antecipadas para a idade de doze
              anos, porque a sua cabeça funcionava melhor do que a de uma pessoa mais velha.
              Não estou a dizer isto para impressionar o leitor. O que é certo é que, desde o
              Egipto até Israel, o Menino era hiperativo; se dependesse d'Ele, teria fugido,
              ou corrido sobre as águas, e não teria parado até chegar a Jerusalém. Já tinha
              imaginado tudo. Dirigir-se-ia ao pátio do Templo, pediria a palavra e deixaria
              sair a verdade da sua boca, toda a verdade e nada mais do que a verdade.
   "Aqui vou eu, Jerusalém",
              sussurra o Menino ao deixar o Egipto.
                   A ideia que o Menino tinha do seu destino
              messiânico era clássica no pensamento popular da época. O Filho de David
              apareceria no seu cavalo de glória perante os poderes do Templo, reuniria à sua
              volta todos os filhos de Abraão do mundo e levá-los-ia a conquistar os confins
              da terra.
   Com estas intenções sagradas em mente, a
              cerimónia de admissão na comunidade realizada, o seu décimo segundo ano
              concluído, Jesus dirige-se ao Templo para pôr em prática a sua estratégia.
   No primeiro dia, chamaria a atenção sobre
              si próprio; no segundo dia, a palavra espalhar-se-ia; e no terceiro dia,
              revelar-se-ia a todos os magos de Israel na imensidão da sua realidade divina.
              No quarto dia, o Messias estaria no seu trono, chamando para as suas fileiras
              todos os exércitos do Senhor no mundo.
   E assim foi. Pelo menos durante os dois
              primeiros dias. Mas no terceiro dia acontece algo que marcará a sua existência
              para o resto da sua vida.
   Maravilhados com a inteligência deste
              Menino que sabia mais do que todos os sábios de Israel juntos, as autoridades
              do Templo acabaram por se reunir para tomar uma decisão sobre o que se estava a
              passar.
   Entre eles, tomou o seu lugar à volta de
              Jesus, rodeado por sua vez pelos doutores e príncipes do Templo, um certo
              Simeão. Este Simeão foi o velho que saudou o recém-nascido e disse ao seu Deus
              que já o podia deixar ir ter com os seus pais, pois já tinha visto o Cristo.
   Deus parece não concordar com Simeão. Em
              vez de o levar para o céu, deixou-o na terra.
   Logo que Simeão viu o Menino, reconheceu
              o Filho de Maria. Ficou maravilhado com o que estava a ver e falou quando todos
              estavam convencidos de que ele estava a olhar para o Filho de David.
                   -Diz-me, filho, disse este Simeão,
              quebrando o silêncio.
   E continuou a dizer palavras de sabedoria
              desconhecidas do menino e de todos.
                   -O que é que vai acontecer quando te
              fores embora? Nós, homens, voltaremos ao nosso mundo antigo e quotidiano, ou
              achas que o Cristo ficará connosco para sempre?
   De que é que o velho estava a falar,
              pergunta-se o rapaz.
                   O velho estava a dizer-lhe, no meio dos
              protestos de todos os seus colegas, que Cristo tem de ser rodeado por uma
              matilha de cães, carregar todos os pecados do mundo, oferecer-se como o
              Cordeiro da Expiação.
   -Mas, se ele se sentar no seu trono, como
  é que se cumprem as Escrituras", disse esse Simeão.
   O Menino ficou gelado. Seria ele o Servo
              de Javé das profecias de Isaías?
   Não é que o Menino não conhecesse as
              profecias. Conhecia de cor os livros proféticos. O que o choca é a
              interpretação que Simeão lhes dá. Era uma sabedoria tão nova e desconhecida
              para ele como para os outros que estavam a ouvir.
   
 A ESPADA DE DAVID
               
               Diz a lenda que o grande guerreiro dançou
              a dança da vitória à volta do cadáver do inimigo. Diz-se também que esses
              bárbaros roubaram o segredo do ferro aos heróis de Troia, antes de Enéias cair
              sob a astúcia dos gregos.
   Entre esses monstros sem alma, o mais
              horrível era sempre o chefe. O chefe nem sempre era o mais alto, mas era sempre
              o mais cruel, o mais terrível, o mais impiedoso, o mais letal e maligno. Nesta
              ocasião, o mais alto e o mais cruel e impiedoso bárbaro que se pode imaginar
              tinham-se juntado no mesmo corpo. O seu nome era Golias. A sua espada era tão
              grande como a daquele outro guerreiro a quem os hispânicos chamavam Rodrigo
              Diaz de Vivar, aquele que cortou cinco cabeças de mouros em fila indiana.
              Ninguém queria aproximar-se a menos de três metros do Cid Campeador; esses três
              metros eram o comprimento da sua arma, do ombro à ponta da espada de aço
              espanhol. O braço e a espada eram a mesma coisa para aquele guerreiro
              castelhano que, em estatura, pouco ou nada tinha a invejar ao filisteu
              fanfarrão e fanfarrão que cometeu o terrível erro de tirar o capacete diante do
              lançador.
   Diz a lenda que David pegou na enorme
              espada do gigante e cortou-lhe a cabeça com ela. Diz-se ainda que o guerreiro
              hebreu lutou com ela à frente dos seus exércitos. Daí devemos deduzir que, se
              David era belo de rosto, não era de modo algum baixo de corpo ou de braços
              finos e delicados. Não era um gigante, mas certamente o menos parecido com ele
              era um anão.
   Início da sua coroa, a espada de Golias
              era o símbolo real por excelência que conferia ao seu possuidor o trono de
              Judá. Salomão recebeu-a e Salomão deu-a ao seu filho. Roboão ao seu filho,
              Roboão ao seu filho, e assim passou de mão em mão durante os cinco séculos que
              decorreram desde a coroação de David até ao último rei de Jerusalém.
   Nabucodonosor arrancou-a das mãos do
  último rei vivo de Judá e atirou essa espada de museu para o meio dos outros
              tesouros que os seus exércitos tinham recolhido em todo o mundo. Viu-a tão
              grande e pesada que pensou tratar-se de um objeto de decoração. Esqueceu-a e
              teria ficado lá para sempre se, depois de ter conquistado a Babilónia, Ciro, o
              Grande, não a tivesse entregue ao profeta Daniel para que fizesse com esse
              símbolo sagrado dos hebreus o que o seu espírito lhe pedisse.
   Por direito legítimo, a espada de David,
              a espada dos reis de Judá, pertencia por herança a Zorobabel. Mas o profeta
              Daniel negou-lha, porque não era com a espada que ele deveria reconquistar a
              Pátria Perdida. A espada de Golias permanecerá na Grande Sinagoga dos Magos do
              Oriente até ao nascimento do Filho de David.
   Essa espada era a espada que José
              empunhava no dia em que entrou no Templo à procura do Filho de Maria.
   A espada de David foi um presente dos
              Magos ao pai do Messias. Coube-lhe a ele guardá-la até ao dia da coroação do
              seu filho.
   Os Magos ofereceram muitos presentes a
              José. O ouro, o incenso e a mirra foram os três últimos presentes que lhe
              deram; mas estes eram para o Menino. Antes, tinham dado a José um cavalo
              ibérico que voava como uma estrela cadente e era capaz de atravessar a Samaria
              sem água nem descanso. E três cães da mesma ninhada, uma relíquia dos cães que
              os reis de Nínive levavam consigo nas suas caçadas aos leões. Um chamava-se
              Deneb, o outro Sirius e o terceiro Kochab. José nunca os levou juntos. Eram tão
              parecidos que quem não conhecesse José pensava que ele tinha apenas um dessa
              espécie em vias de extinção. Eram tão meigos como cordeiros aos pés do dono,
              mas mais ferozes do que o diabo mais malvado do inferno mais malvado se lhes
              cheirasse a perigo. Os seus três cães, o seu cavalo ibérico e a espada de
              Golias foram as três coisas que José levou consigo de Belém no dia em que
              Isabel lhe disse:
   -Filho, todas as suas irmãs estão casadas
              e felizes; o rapaz já está em flor e tem toda a graça do pai. Cleofas é forte,
  é alto, é esperto, em breve encontrará alguém que o ame loucamente. Muito em
              breve a Filha de Salomão estará livre do seu voto; não é isso que o Filho de
              Natan tem estado à espera todos estes anos?
   E uma quarta que José levou consigo para
              Nazaré, a mais preciosa de todas: o documento genealógico da sua Casa. Mas
              estávamos a chegar ao ponto.
   Só por duas vezes na sua vida o punho de
              José foi atingido pela espada do seu pai David. O facto de o seu braço ter sido
              atingido diz-nos muito sobre a estatura do homem e a força do seu braço. A
              primeira foi quando José foi buscar Maria a casa de Isabel. A segunda foi
              quando entrou no Templo para ir buscar o Filho de Maria.
   O que teria acontecido se, em vez de
              dizer aos pais o que lhes disse a eles, o Menino tivesse dito a José: Filho de
              Natan, dá-me a espada dos reis de Judá.
   
               ÉS PÓ E AO PÓ HÁS-DE VOLTAR
                   
               O que é que aquele velho descobriu ao
              Menino? O que é que aquele homem lhe mostrou que fez o Filho de Maria desistir
              dos seus projectos? O que é que ele lhe disse? Porque é que aquele Menino
              fechou a boca e recusou subir para o cavalo do Filho de David, o príncipe
              corajoso e impetuoso que, segundo a interpretação popular das Escrituras, à
              frente dos seus exércitos, devia trazer a paz de Deus ao mundo inteiro? Porque
  é que aquele que entrou no Templo pronto a revelar-se e a reclamar para si o
              que lhe pertencia por direito humano e divino abandonou subitamente os seus
              projectos messiânicos e foi atrás dos "seus pais" sem dizer uma
              palavra?
   Que aquele velho - cuja identidade
              descobriremos na Segunda Parte - descobriu ao Menino a sabedoria que todos vós
              conheceis da boca da Igreja Católica desde os tempos dos Apóstolos, isso é
              certo. Mas havia mais, muito, muito mais.
   E a única maneira de saber o que se passa
              na sua cabeça é colocarmo-nos no seu lugar. Mas não da forma arbitrária que
              mais nos convém e que parece ser a nossa natureza. Durante algum tempo, vamos
              esquecer tudo o que ouvimos e colocar-nos no lugar deles. E, para isso, vamos
              aceitar a tese católica da encarnação do Filho de Deus. Vamos abraçá-la a todos
              os níveis e vamos levá-la até às últimas consequências.
   Vamos considerar a possibilidade de esse
              Menino ter sido o Filho de Deus em pessoa. Não um filho qualquer, à nossa
              imagem e semelhança, por adoção; nem mesmo um filho de Deus à imagem e
              semelhança dos anjos que vemos no livro de Job, na presença de Deus. Não, vamos
              partir do princípio de que aquele Menino era um filho de Deus à maneira daquele
              que é o unigénito do seu Pai, porque foi gerado pelo seu Ser. E que, como Filho
              unigénito, preenche todas as exigências que o Credo católico coloca sobre a
              mesa: Luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. É uma possibilidade. Uma
              possibilidade que vamos considerar em toda a sua amplitude.
   O primeiro a assumir essa possibilidade
              foi o próprio Jesus. Na sua doutrina, ele proclamou-se a Causa Metafísica da
              Criação, ou seja, a razão pela qual Deus faz todas as coisas, incluindo o nosso
              Universo. Desta posição de Filho Unigénito, Jesus respondeu aos judeus que lhe
              perguntavam a idade que "Ele já existia antes de Abraão", o que é
              lógico se pensarmos que, sendo a Causa Metafísica da Criação, a sua presença
              era necessária no Princípio e antes do início da ação. Coerente consigo mesmo, Jesus
              voltou a proclamar para si essa condição de Razão Metafísica ao afirmar que
  "seu Pai lhe mostra tudo o que faz". A outra coisa, que nos convidou
              a assistir ao Espetáculo nos próximos Actos Criativos, é simplesmente
              colateral. Não é relevante neste momento. A nossa tese é que quando Deus abriu
              o Princípio e criou os Céus e a Terra, o Seu Filho Unigénito estava ao Seu lado
              e foi por amor a Ele que se propôs criar-nos, a Raça Humana.
   Todos perfeitos. Até que Adão cometeu o
              erro de se deixar levar pela Serpente.
                   Independentemente do dilema que a
              perfeição divina e a liberdade humana nos colocam, o que é realmente importante
  é que o Filho de Deus sentiu a condenação de Adão como algo que o afectava
              diretamente.
   As Escrituras mostram claramente que Deus
              e o seu Filho deixaram Adão e Eva durante algum tempo. Quando regressaram,
              encontraram o facto consumado. O Pai compreendeu tudo o que tinha acontecido,
              julgou o caso e, com a ira do Juiz do Universo, condenou todos os actores. À
              Serpente jurou que um filho de Adão se levantaria e esmagaria a sua cabeça.
              Adão e Eva foram condenados a morrer.
   Atordoado, alucinado por esta rebelião
              contra Deus, o seu Filho, irmão do Adão morto, sentiu o sangue subir-lhe à
              cabeça e sonhou com o dia da vingança do filho do Homem.
   Mas esse dia de vingança não era para
              amanhã, nem para depois de amanhã. De facto, ninguém sabia quando. O Filho de
              Deus só sabia que, à medida que o tempo passava, a perda da identidade do Homem
              que Deus criou tornava-se cada vez maior. Tornou-se tão grande, e o ódio que se
              estava a acumular contra os anjos rebeldes por causa dele tornou-se tão grande,
              que com todo o seu Ser pediu ao Pai que o enviasse à Terra em pessoa para
              enfrentar o próprio Diabo. Quando o Demónio fosse derrotado, a coroa de Adão iria
              para o Vencedor; e sendo o Vencedor e o Filho de Deus a mesma pessoa, durante o
              seu reinado, a Raça Humana emergiria do Inferno em que tinha sido lançada, e
              retomaria o caminho para o qual tinha sido criada, e do qual a traição a tinha
              desviado.
   Assim, o Filho de Deus veio à Terra com o
              seu sangue a ferver, pronto a enxugar as lágrimas do nosso mundo. A sua espada
              estava na sua boca, era a sua Palavra. Para conquistar o mundo, não precisava
              da espada de Golias, bastava-lhe abrir a boca e ordenar aos ventos que se
              levantassem, aos exércitos que depusessem as armas. Trouxe a Paz, o seu
              estandarte era o da Saúde que vence a Morte e conduz os homens à Imortalidade.
   Imortalidade?
                   Eu disse Imortalidade?
                   "Sim, filho, mas vais revoltar-te
              contra a sentença do teu Pai?", disse-lhe aquele Simeão. "Para nos
              salvares, condenas-te a ti próprio, para salvares o Presente, condenas o
              Futuro? Certamente que o teu Pai te enviou para enfrentar o Maligno e tu lhe
              esmagarás a cabeça, mas se derrubares as paredes da nossa prisão contra o
              julgamento divino, em que te diferenciarás daquele contra o qual vieste vingar
              a morte do nosso pai Adão? Porque o juízo de Deus é firme: "És pó e ao pó
              voltarás". É a nossa sorte: o teu Pai e Deus disse-te: "Vai e anuncia
              o fim da sua prisão; tira-os de lá e dá-lhes a imortalidade por que anseiam
              desde que os criei? Não vês, filho, que ao deixares-te arrastar pelo amor que
              nos tens, arrastas-te a ti próprio para a perdição e arrastas contigo toda a
              criação? Quem, senão o Juiz de todos nós, pode assinar a nossa liberdade? Mas
              se Ele deu ao seu Filho esse Poder, então faze segundo a tua vontade".
   
               
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|  | A VERDADE GERARÁ A JUSTIÇA E O FRUTO DA JUSTIÇA SERÁ A PAZ. |  |