O Coração de Maria. A vida e os tempos da Sagrada família
Terceira Parte
História de Jesus de Nazaré
O PENSAMENTO DE CRISTO
O facto de o Filho de Deus não precisar
de ser crucificado para recuperar a sua condição sobrenatural foi-nos mostrado
pelos evangelistas no episódio da Transfiguração. A Transfiguração de que falam
é isso mesmo, a resposta a esta simples questão. A necessidade da morte de
Cristo, de que falam nos seus Evangelhos, remete para os pressupostos da
Doutrina do Reino dos Céus. Se houve necessidade da morte de Cristo, não foi
por causa da incapacidade de Jesus de recuperar a sua condição divina. Para
recuperar a sua condição divina, bastava que Jesus a desejasse.
Quando regressou a Nazaré, o que
realmente aconteceu ao Menino foi ter nascido de novo. O Filho de Deus que se
fez homem e que estava a morrer para crescer e que nunca via o dia em que se
sentaria entre os adultos, acabou por nos tocar. Deus está em cima e nós em
baixo e todo o dilema da Humanidade é uma ponte sobre areias movediças. Como
conhecer o pensamento de Deus? Como descobrir o seu projeto de salvação eterna?
Ora, era um homem que fazia todas as
perguntas que todos os homens faziam e a que nenhum deles respondia. Agora era
Cristo que levantava os olhos para cima e olhava Deus face a face procurando
conhecer o Seu pensamento. Agora era o filho do Homem que reconhecia a sua
ignorância e procurava em Deus a sabedoria.
Mas tu tens doze anos. E tens uma vida
inteira à tua frente. E todos os dias que acordas, acordas com essa Cruz. E
cada ano que passa, cada ano que passa, essa Cruz pesa mais sobre ti. E, quer
queiras quer não, esse peso vai pesar-te mais do que uma vez.
Podes fazer tudo e não fazes nada, vês o
mundo à tua volta a viver no inferno e não podes fazer nada, embora tenhas o
poder de fazer tudo. Podes salvar o Presente e condenar o Futuro, ou deixar o
Presente viver o seu Destino e guardar a tua Liberdade para quando o
prisioneiro sair da cadeia. Esperarás por ele do outro lado da porta para o
guiares para um Novo Dia de liberdade que nunca mais acabará. Até esse Dia, o
mundo terá de seguir o seu caminho e, até chegar a tua Hora, terás de te
afundar muitas vezes em depressões profundas, e não terás ninguém que te apoie,
não haverá ninguém ao teu lado com quem partilhar o teu destino, ninguém que te
ajude, ninguém que te estenda a mão, porque ninguém estará contigo para saber o
que te está a acontecer e porque te estás a afundar até ao ponto de te
afogares.
Tu és Jesus de Nazaré, um homem jovem e
rico, tens tudo o que um homem deseja e só levas o que queres. Não precisas de
nada de ninguém. As portas abrem-se para ti onde quer que vás; és tratado como
um senhor e a tua palavra vale ouro para aqueles que fazem negócios contigo.
Ninguém conhece o teu segredo; só uma mulher. O marido dela morreu quando
tinhas cerca de vinte anos, e o Cleofas também. Só restam elas, a tua Mãe e a
sua irmã Juana; só elas sabem quem tu és. Mas nenhuma delas sabe para onde
vais, nem quais são os teus planos. Tu estás sozinho. Quando as tempestades se
abaterem sobre a tua mente, não terás ninguém que te abrace e que combata a
tempestade contigo. Se não enlouqueceres, será apenas porque és quem és, mas
mesmo que sejas quem és, terás de sofrer a tempestade a céu aberto, sem abrigo
ou cobertura contra a água que cairá sob um céu coberto de escuridão sobre o
teu corpo mortal. Quanto mais doce for a vida que levas, mais amarga ela será.
Para o homem faminto, o pão duro sabe a
glória, mas se deres o mesmo pão ao comedor de pãezinhos, ele partir-lhe-á os
dentes. Tu, Jesus, estás habituado a comer o melhor pão. O teu corpo está
habituado às melhores vestes. E tu vais conduzir um exército de homens ao mesmo
destino. Não te afundarás? Os seus fantasmas não te atacarão nos teus sonhos?
Não acordarás nos desertos, de joelhos, implorando misericórdia? Não serás
atormentado por visões dos seus corpos esmagados pelas feras dos circos
romanos, enquanto olhas para o Céu, pedindo o fim da sentença contra Eva e os
seus filhos? Quanto tempo te durará cada ano que viveres? Os vinte anos que te
esperam não serão para ti uma eternidade? Eles estão diante dos vossos olhos.
São todos puros. Um a um, são todos inocentes. O seu único crime é amar-te
acima de todas as coisas. Amam-te mais do que o tempo, mais do que a
imortalidade, mais do que todos os tesouros do universo. Tu és a sua vida. E
eles estão ali, pendurados nas suas cruzes, actores de um espetáculo sangrento,
uma ode à loucura, cantando em honra das lágrimas que tu, Jesus, derramaste por
eles no deserto, quando desapareceste misteriosamente e voltaste sem dizer a
ninguém de onde vinhas nem o que andavas a fazer. Viram as tuas lágrimas e
adoçaram-te o coração no dia do seu martírio, para não despertarem no teu peito
o grito da vingança. Não sofrerás na tua carne o crime das tuas centenas de
milhares de irmãos mais pequeninos, que levarás à cruz sem crime algum?
Amar-vos será o seu crime. Não suplicareis ao vosso Pai por misericórdia? Não
procurareis outra alternativa viável? E, no entanto, a taça está cheia e tens
de a beber até à última gota. Uma só Esperança te sustenta, mas a ninguém a
poderás contar, a ninguém poderás partilhar a alegria infinita com que todo o
teu ser se regozija ao olhares para Aquele que está sentado no Tribunal e ao
veres, contemplares e olhares para ti próprio.
JESUS CRISTO
Não sabemos em que momento da vida
atravessamos a fronteira entre a infância e a adolescência; nem em que momento
deixámos de ser jovens e nos tornámos adultos. Parece não haver uma regra
geral; é algo que cada um descobre por si próprio e vive à sua maneira.
Sendo assim entre nós, quão mais complexo
é aplicar a nossa psicologia a alguém como o Jesus dos Evangelhos!
Tendo tomado a posição de o ver como ele
se via a si próprio, tendo experimentado, na medida em que a nossa compreensão
nos permite, o que se passava na sua cabeça, avancemos. Há ainda muitas áreas
fechadas à inteligência dos séculos passados e que, submetidas à fantasia
daqueles que quiseram penetrar no seu íntimo, chegaram até nós distorcidas como
pinturas viciadas pelas paixões dos copistas.
Se em algum momento deixei as minhas
próprias paixões correrem livremente, o leitor, como ser livre, deve a si
próprio recriar a linha histórica com base nas características da sua própria
inteligência. O autor só pode apontar para o horizonte e pintar o que vê com os
seus olhos, e embora a configuração do olho seja a mesma para todos, a forma de
ver as coisas assume uma forma pessoal e intransmissível. É a partir desta
plataforma de visão pessoal e de compreensão individual que o autor recria as
coisas que escreve; o leitor terá de as adaptar à sua própria maneira de rir,
chorar, odiar, amar, compreender e até ignorar.
Regressemos então com Jesus a casa dos
seus pais em Nazaré, e a partir do que ele descobriu, sabendo agora o que
acabava de descobrir, a Cruz de Cristo, a sua Cruz, tentemos abrir o horizonte
das suas memórias aos reflexos puros da realidade tal como ele e os seus a
viveram.
O Menino que desce a Jerusalém é, em
todos os aspectos, visto pelos olhos de um forasteiro, de um cavalheiro. O seu
primo Tiago, por exemplo. Tiago era um par de anos mais velho do que o seu
primo Jesus e, no entanto, enquanto este último ainda não tinha pegado num
martelo e não sabia martelar um prego, Tiago de Cleofas era já um machado,
pronto a desempenhar o seu papel de aprendiz de carpinteiro. Como pai desse
rapaz alto e superinteligente, José teve de suportar mais do que uma crítica à
sua maneira de educar o seu único filho. Diziam-lhe que o estava a mimar.
Não vamos falar de inveja nem evocar
paixões que todos nós gostaríamos de não ter conhecido. O que é verdade é que a
mentalidade de cidade pequena sempre foi um viveiro da mais conspícua e
aborrecida ignorância.
A crítica a José pela maneira como educou
o seu primogénito não dizia nada a Maria, nem podia ser levada mais longe do
que isso, porque o Menino era quem era. O Menino que criticavam era o herdeiro
da filha de Jacob. Uma grande parte de tudo o que os nazarenos viam à sua volta
pertencia ao "pequeno senhor Jesus". Se os seus pais não queriam que
ele tocasse nos pregos e nos martelos, quem é que os podia censurar?
O que é certo é que, no regresso de
Jerusalém, esse Menino quebrou o guião do "senhorzinho" que devia ser
o seu, e ligou-se ao pai com a obediência e a diligência do menino bom e
dinâmico que qualquer pai deseja para o seu filho.
Maria viu-o terminar o dia em oração.
Nunca na sua vida o seu filho tinha levantado uma tábua e, de repente, estava a
pedir trabalho. Foi o suficiente para o pai abrir a boca e obedecer-lhe. Até o
próprio José olhou para ele e disse: "O que é que se passa contigo, meu
filho?
Mas não era só na carpintaria. Se a Tita
Juana precisava de fazer um trabalho, o filho da irmã estava lá para o que
fosse preciso. Se ela tinha de ir para o campo apanhar amêndoas ou ceifar o
trigo, o seu sobrinho Jesús era o primeiro a chegar de madrugada. Nunca se
queixava, nunca respondia, nunca lhe dava um "não". Mas nem à sua
própria gente, nem a qualquer outra pessoa que lhe pedisse um favor, como é que
ele não era censurado!
É como se não quisesse pensar, como se
precisasse de esquecer alguma coisa. Precisava de se entregar à atividade
física. Os braços doíam-lhe e os tendões tremiam de cansaço, mas ele nunca
recusava nem desistia. Levantava-se primeiro e deitava-se em último lugar. Já
não brinca com as crianças da aldeia. Nem sequer falava, exceto quando lhe
pediam. A mudança foi tão súbita, tão colossal, tão surpreendente que a mãe se
sentava à beira da cama enquanto o filho dormia, perguntando-se o que se
passava na sua cabeça. Antes, o seu filho falava com ela, contava-lhe tudo.
Desde que regressaram de Jerusalém, o seu filho era uma pessoa diferente, era
como um estranho para ela. Para todos os outros, ele era o que devia ser, um
rapaz obediente e calado que nunca falava com os mais velhos ou respondia
quando o repreendiam por qualquer coisa. Mas para Ella, o seu rapaz estava a
tornar-se um estranho.
Ele está a tornar-se um homem.
diziam-lhe. Isso não era suficiente para Ella. Ela sabia que o que quer que
estivesse a acontecer ao seu filho não podia ser explicado pela experiência
humana. Não tinha ela vivido o naufrágio do seu filho em Alexandria? Para
aqueles que o viram sentado à porta da Carpintaria do Judeu, a tristeza do
Menino podia ser explicada por um capricho que o pai lhe negava e o proibia de
voltar a pedir. Assim sem mais nem menos? Nem pensar! Ela sabia que o seu Filho
não funcionava como as outras crianças.
Naquela ocasião, em Alexandria, Maria
encontrou uma maneira de entrar no coração do seu Filho. Mas desta vez era-lhe
totalmente impossível. Tudo o que podia fazer era deitar-se ao seu lado e
adormecer, guardando os seus sonhos, porque, fosse o que fosse que estivesse a
passar, desta vez o seu Filho nunca lhe abriria a porta da sua mente, nem lhe
permitiria encontrar o caminho para o seu coração.
Não é que ela estivesse triste, ou que
carregasse uma dor tão grande que a ideia de a partilhar parecesse impossível à
Criança. Ela sabia que era algo mais profundo; tão profundo que, mesmo
olhando-o nos olhos, o seu olhar perdia-se no campo dos olhos de Jesus, sem
nunca alcançar o horizonte atrás do qual o Filho escondia o seu pensamento.
"O que é que se passa contigo, meu
filho?", perguntava-se ela, sabendo que o seu Filho nunca lhe daria a
resposta.
A MORTE DE CLEOFAS
Cléofas, o pai de Tiago, o Justo, e dos
seus irmãos, foi abençoado. Se é verdade que, antes da morte, os seres humanos
revivem os anos vividos neste mundo, os últimos momentos do irmão de Maria
foram felizes.
A única mágoa que poderia ter obscurecido
as suas recordações luminosas foi a morte do pai, pouco depois do seu
nascimento, mas mesmo essa mágoa não conseguiu ensombrar os seus últimos
momentos. A sua irmã Maria transformou essa ausência física numa presença
angélica, sempre a velar pelo seu filho.
Agora que estava a um passo de atravessar
o limiar da morte, Cleofas recordava com um sorriso a forma como a irmã mais
velha tinha atenuado a ausência do pai, transformando-o no seu próprio anjo da
guarda. Como podia ele ter duvidado da inocência da irmã Maria no dia em que a
mãe lhe contou a Anunciação?
Foi o primeiro homem do mundo a conhecer
o Mistério da Encarnação e o primeiro a acreditar de olhos fechados na Virgem
que iria conceber o Rei Messias. Foi a sua mãe que o levou sozinho e lhe disse
com todas as palavras. "Filho, passa isto, isto e isto, e quero que faças
isto, isto e isto".
Cléofas esqueceu a mulher e os dois
filhos pequenos, selou o seu cavalo, a égua da irmã, e, sem dar mais
explicações do que as necessárias ao cunhado, abriu caminho para a Virgem
através da Samaria.
Santo Deus, como ele era belo, querubim
no seu cavalo ardente, com o olhar de águia a perscrutar o horizonte, espada
pronta e afiada para traçar à volta da sua irmã o círculo que o soldado romano
desconhecido traçou à volta do grande rei da Ásia. "Se atravessares a
linha, declaras guerra a Roma; se voltares para trás, vais em paz. Se quiseres
guerra, tê-la-ás".
O cunhado deu-lhe por companhia dois dos
seus cães, Deneb e Kochab, que pareciam ter sido contagiados pela tensão do
jovem irmão humano; Deneb avançava à frente, Kochab guardava a retaguarda.
A Virgem teria descido sozinha à Judeia,
sem outra proteção que não fosse a confiança depositada no Senhor pelo seu anjo
Gabriel. Mas tão bela era a sua imagem que Cleofas a cobriu com o manto da sua
fé absoluta na sua inocência.
Algum tempo antes de ser descoberto em
Nazaré o estado de graça em que se encontrava a mulher do Carpinteiro, estado
de graça que estava na boca de todos os vizinhos, chega a Nazaré um jovem da
Judeia, da própria Jerusalém, à procura de José. Trazia uma mensagem de
Zacarias. José fica espantado e pensa no seu conteúdo. "Isabel estava
grávida.
Quando a sua sogra decidiu enviar Maria a
Isabel para a ajudar nos últimos meses da gravidez de João, José viu isso como
natural. Mas o que ele já não via como lógico era o facto de ter sido Cléofas a
ir à frente dele e a acompanhar Maria até ao sul. Agora, no seu leito de morte,
Cléofas recorda com carinho o olhar de surpresa do cunhado, quando o ouve
dizer-lhe, menino nos olhos, as palavras de um homem inteiro.
"Não digas mais nada. A conversa
acabou. A minha mãe dispõe, a sua filha obedece e eu, seu filho, cumpro. Até ao
dia do teu casamento, o teu noivo está sujeito à autoridade da minha mãe. Não
há mais nada para falar, José. Quando regressarmos, voltaremos a ver-nos. José
fitou-o com os olhos de quem descobre o homem no rapaz e se alegra por isso,
porque é assim que as coisas devem ser.
Zacarias e Isabel tinham-se retirado para
a sua casa de campo, nas montanhas de Judá, longe de Jerusalém. Já há algum
tempo que o filho de Abias se tinha retirado do seu cargo oficial vitalício na
hierarquia burocrática do Templo. E só o tinha feito há poucos meses, no
próprio Templo, porque, como o sacerdócio era vitalício e ele não tinha filhos,
era obrigado, por sua vez, a fazê-lo até à morte ou até que uma doença o
impedisse.
Saudável e longevo, numa altura em que a
esperança média de vida de um homem mal ultrapassava os cinquenta anos,
Zacarias, embora pudesse ter posto o turno do seu pai à disposição do Templo,
preferiu permanecer no seu posto sagrado até que a morte ou a doença o
obrigassem a retirar-se. E foi exatamente isso que aconteceu. Porque, quando
ficou mudo, já não podia manter a posição de imobilidade que lhe tinha
granjeado tantos inimigos.
A administração do tesouro do Templo era
da responsabilidade das famílias sacerdotais proprietárias das vinte e quatro
rondas de culto. O presidente deste conselho de administração era o sumo
sacerdote, que, por sua vez, era escolhido de entre essas vinte e quatro
famílias. Regra geral, a presidência era transmitida de pai para filho. Mas, de
vez em quando, acontecia o que se passou com Zacarias.
Zacarias não tinha filhos a quem dar o
seu lugar. O mais natural, nesse caso, era colocar o Turno à disposição do
conselho dos santos e escolher um sucessor de entre as famílias. Como
compreenderão, não podia faltar quem pusesse o dinheiro na mesa para comprar o
lugar vago.
De forma não natural e desnecessária,
Zacarias fez muitos inimigos quando se recusou terminantemente a vender a sua
vez. Ninguém o podia obrigar a colocar o turno do seu pai à disposição do
Conselho. E ele não o fez.
Nunca ninguém soube o que o anjo disse a
Zacarias, mas as consequências dessa anunciação foram milagrosas para os seus
inimigos. Mudo, o filho de Abias foi obrigado a pôr a sua vez à disposição do
Conselho, a assinar a sua demissão e a retirar-se do cargo.
Zacarias retirou-se para a casa de campo
que ele e a sua amante tinham nas montanhas de Judá. Era uma casa de campo,
afastada do mundo e da sua agitação, à qual só Simeão, o Jovem, o único da Saga
dos Precursores ainda vivo, tinha acesso. Para além de Simeão, o Jovem, não
recebiam visitas, porquê?
Bem, a causa era o milagre que os pais de
João Batista estavam a viver na sua carne.
No seu leito de morte, Cléofas recordou a
maravilha do dia em que conheceu os seus "avós". Zacarias saltava das
paredes e, se não fossem os cabelos brancos como a neve de Isabel, ninguém
poderia jurar que a mulher tinha mais de sessenta anos. O rapaz parecia-se com
ele, o seu avô. Ele não falava, mas não parava de se mexer. Só um outro casal
na história do mundo tinha vivido um milagre destes, Abraão e Sara, claro.
Do alpendre da casa dos avós, Cleofas
lembra-se de olhar para o horizonte e de dizer para si próprio: "Que se
passa, José, por que demoras tanto? Como podes recriar a alegria daquele rapaz
quando viu José aparecer no vale, galopando pela planície? Não lhe vieram as
lágrimas aos olhos quando viu aquele gigante ajoelhado aos pés da Virgem,
pedindo-lhe perdão por ter duvidado da sua inocência?
No dia em que José anunciou que ia levar
Maria e Jesus para longe de Herodes, Cléofas olhou-o nos olhos, como se
dissesse ao outro: "E tu pensavas que eu ia ficar para trás, enquanto
levavas a minha Irmã para o campo".
Desde a primeira vez que viu o rapaz
magro, José gostou muito de Cleofás. E nunca mais saíram de perto um do outro.
Pai de uma família numerosa que parecia
não ter fim, Cleofás nunca criticou José pelo comportamento do seu filho Jesus
ou pela forma como José o educou. Se o filho Santiago batia com os punhos nos
cantos das tábuas, enquanto o sobrinho Jesús ia passear pelos montes, Cleofás
via isso com os olhos do homem que, afinal, tinha sido o mestre do Cigüeñal.
Foi assim que ele próprio foi educado pela sua mãe.
De todos os filhos de Nazaré, Cleofás era
o pequeno príncipe que não trabalhava nem precisava de ajudar a família. A sua
irmã Juana era suficiente para gerir os campos; a sua irmã Maria dirigia a
oficina de alfaiataria mais rentável da zona. De vez em quando, a bisavó Isabel
vinha de Jerusalém carregada de presentes, mas será que ia esquecer o menino da
casa?
Qual era a sua missão na vida, viver a
vida!
O seu sobrinho Jesus lembrava-o tanto a
si próprio que Cléofas se riu quando viu José a ter tanta dificuldade em
defender o seu Jesus diante dos amigos e vizinhos.
Também ele ficou surpreendido e espantado
com a súbita mudança de carácter do sobrinho, quando este regressou de
Jerusalém. E, tal como a irmã, não consegue compreender o que se passa na
cabeça do sobrinho. O único que parecia compreender o Menino era José.
José é o único que parece não se surpreender.
Era o único que parecia saber exatamente o que lhe estava a acontecer e, tal
como o Menino, seguia a sua política de não dizer uma palavra a ninguém. Com a
Mãe e o tio Cléofas, Jesus sente-se pouco à vontade, porque lê nos olhos deles
o que estão a pensar. Com José, pelo contrário, o Menino está à vontade. Era o
único que não olhava para ele com perguntas nos olhos e o único que sabia como
lidar com ele de tal forma que Jesus esquecia os seus problemas e se tornava o
rapaz ativo, inteligente e trabalhador que todos elogiavam os seus pais.
Sim, claro, Cleofas viveu uma vida
maravilhosa antes de conhecer José. Mas aquele nómada gigante no seu cavalo
ibérico que percorria as províncias do reino, os seus três querubins assírios
retirados de um fresco perdido num qualquer palácio de Nínive, aquele nómada
deu à sua vida o que lhe faltava, a imagem do pai, do irmão que nunca teve. E
agora, no seu leito de morte, ele seria para os seus filhos e filhas o pai que
lhes faltava.
Sim, se é verdade que antes de morrer a
mente percorre os anos vividos, um a um, Cléofas reviveu anos únicos,
maravilhosos. A Virgem por irmã, o rei Messias por sobrinho, um Querubim por
cunhado, uma mulher maravilhosa que lhe tinha dado filhos e filhas, todos
saudáveis e fortes.
-José..., começa ele, dizendo na sua
cama.
-Irmão, José deu um passo em frente. Os
teus filhos são meus filhos, as tuas filhas são minhas filhas. De todos nós, tu
és, neste momento, o mais abençoado. O nosso pai David espera o seu príncipe
Cléofas no seio dessa luz que se acenderá quando fechares os olhos. Lá nos
encontraremos, irmão. Vem apertar-me a mão quando for a minha vez de fechar a
minha.
E assim foi. Cleofas morreu jovem, como o
seu pai Jacob.
-Tal como o nosso pai, Joana, no auge da
vida. Como sentiremos a tua falta, irmão", exclamou a Virgem.
Enterraram-no em Nazaré, no túmulo de seu
pai Jacob, ao lado de seu avô Mattan, sobre os restos mortais de Abiud, filho
de Zorobabel, filho de Salomão, filho de David.
A MORTE DE JOSÉ
A vida de José, o Carpinteiro, apagou a
sua chama pouco depois de se ter consumido a de Cléofas. Se a existência de
Cleófas era bela e digna de ser vivida, a de José Carpinteiro era a do
guerreiro sempre à beira do precipício, com os músculos constantemente tensos,
os nervos aguçados até ao último átomo, sempre vigilante, sempre pronto a
enfrentar a próxima reviravolta do destino.
"Nada está predeterminado, quem sabe
o que o amanhã trará? Quando o livro da vida virar a página, verás o que ele
contém. E que cada dia seja suficiente para o seu dia".
"O destino dos filhos do Espírito é
responder rapidamente ao som da trombeta que chama à ação.
"A morte ataca sempre pelas costas,
mas aquele que lhe vira a cara tira-lhe da mão o ás chamado elemento
surpresa".
Provérbios desta natureza eram o pão
quotidiano de José, o Carpinteiro. Zacarias, o futuro pai do Batista, o seu
preceptor, tutor, mentor, professor, tudo o que há de bom num só, dedicou o seu
talento, o seu génio, a sua sabedoria, a sua arte, tudo o que tinha de melhor
para moldar o espírito do jovem José. Graças à sua paciência e dedicação, o
guerreiro destemido que corria no sangue do jovem José aprendeu a olhar a Morte
de frente e, com o brilho nos olhos do herói que se sabe invencível, até o
próprio Inferno.
Mas nunca articulou a sua mente para ser
apanhado nas redes do próprio Deus.
Também a sua conceção do nascimento do
filho de David era a clássica de sempre, papá, mamã, casam, unem-se, duas
pessoas diferentes e uma só coisa, o apelo do sangue, o poder da carne.
Imaginar que Deus se ia envolver na encarnação do seu Filho através do seu
Filho? Bem, não, nem por isso; o que aconteceu depois nunca foi imaginado.
Olhando para trás, revivendo aqueles
dias, José, o Carpinteiro, riu-se à gargalhada.
Desta vez, o guerreiro tinha chegado ao
outro lado do campo de batalha. À volta do seu leito de morte, os seus
sobrinhos e o seu povo choram a despedida do querubim que nunca baixou a sua
vigilância, a morte do herói que nunca perdeu o capacete e a armadura. Ele
estava pronto a entregar a sua alma.
Todos pensavam que as suas forças tinham
chegado ao fim, que o seu fôlego se desvanecia nas distâncias entre o Céu e a
Terra, quando José, o Carpinteiro, saiu do seu sono. Acordou com a recordação
da sua resposta ao seu mestre Zacarias, no dia em que Isabel lhes deu a notícia
do voto da Virgem.
"Seja feita a vontade de Deus. Há
mil anos que o meu povo espera por este dia, mais vale esperar dez", disse
José.
Deus, que reviravolta inesperada deste à
vida do teu servo!
O jovem José cresceu a sonhar com o dia
em que veria nascer da sua mulher o rei Messias, dono da espada dos reis,
portador legítimo dos dois rolos messiânicos.
Os seus irmãos e irmãs não compreendiam
porque é que o seu José não se casava na idade a que todos estavam habituados.
A vida era curta. A vida era dura. Nesta altura da história, ninguém podia
dar-se ao luxo de deixar passar os anos ao estilo dos Patriarcas, que casavam a
partir dos quarenta anos. Muitos já eram avós aos quarenta anos, por isso, de
que estava à espera o chefe do clã dos carpinteiros de Belém para escolher uma
esposa e honrá-los a todos com sangue fresco?
José, o Carpinteiro, ficou em silêncio.
Responde aos seus irmãos com o silêncio de quem parece, ao contrário dos outros
mortais feitos de barro, ter sido formado de ferro.
Longe do seu peito ter um coração de
pedra, mas tu não lhe deixaste, santo Deus, outra alternativa senão adotar essa
atitude para o bem de todos, pois se a mais pequena notícia da conspiração
davídica que se tramava nas suas costas tivesse chegado aos ouvidos dos
sicários de Herodes, quanto tempo teria demorado a serpente a ordenar a morte
de todos os irmãos do teu servo?
José, o Carpinteiro, saiu do seu sono,
revivendo aquele dia inesquecível, o dia em que foi a casa da sua sogra Ana
para lhe pedir que explicasse o rumor que escandalizava toda a gente em Nazaré.
O que é que se passava?
O que é que lhe chegava aos ouvidos?
Os vizinhos estavam a dar pistas
tremendas.
"Como é que vai chamar à criança,
Senhor José? Porque vai ser um rapaz.
El Carpintero sentiu finalmente o aperto,
deixou de contemplar e foi diretamente falar com a sogra.
A Viúva, que estava à espera da visita,
foi abrir a porta.
A mãe da Virgem tinha-se preparado para
este encontro.
Temia-o. Ansiava por ele. Ansiava por
ele. Sonhava com ele, suspirava por ele, tremia só de pensar nele. Estaria ela
à altura da tarefa? Teria a graça que a inocência da sua filha exalava passado
para ela, a sua mãe? Como mãe, estava pronta a arrancar os olhos a quem
pronunciasse a palavra adultério. O seu genro José era um santo, um homem muito
bom, mas que homem não se escandalizaria ao saber que a sua mulher estava em
estado de graça por obra do Espírito Santo? Com o coração pesado, a viúva abriu
a porta ao genro.
-Senta-te, meu filho, disse ela, este é um
grande dia para todas as famílias da terra. Que maneira de abrir a brecha!
O Carpinteiro senta-se. Não abre a boca.
Nem precisaria de o fazer. O seu olhar dizia tudo.
Homem, mil imagens podem valer menos do
que uma palavra de Deus, e uma imagem pode valer mais do que mil palavras do
homem. Na situação em apreço, a mãe da Virgem perante o homem diretamente
afetado pela Encarnação do Filho de Deus por obra e graça do Espírito Santo,
nem as palavras nem as imagens pareciam suficientes àquela mãe presa nas malhas
de um Deus que não pede autorização a ninguém para entrar na vida das criaturas
que cria a partir do barro.
Bastavam os olhares. Os olhares diziam
tudo. A viúva sabia o que o genro vinha buscar e o genro sabia que ela sabia o
que ele vinha buscar. A questão era saber quem iria quebrar o gelo. A mãe da
Virgem, inspirada pelo amor infinito que tinha pela filha, por um lado, e pela
sabedoria do próprio Espírito Santo, por outro, irrompeu:
-Meu filho, acreditas que Javé é Deus?,
diz ela ao genro, sem lhe dar tempo para dizer esta é a minha boca. Uma tal
entrada, ela sabia, era a última coisa que o seu José podia esperar.
O Carpinteiro nem sequer tremeu. Um homem
de gelo teria mexido mais com os nervos do que o Carpinteiro naquele momento.
Bem, ele já conhecia a sua sogra Ana,
sabia o selo que ela tinha posto na alma daquela mulher. Zacarias educou-o,
José; mas a sua sogra Ana foi formada com as suas próprias mãos por Isabel, a
mulher do seu Mestre. Assim, se o que a viúva de Jacob de Nazaré estava a fazer
era defender a sua filha Maria, e estava certamente a fazê-lo, a mãe da Virgem
estava a fazer um bom começo. Resta saber o que vai acontecer com toda esta
filosofia.
A mãe da Virgem, sem perder a calma nem
se sentir desarmada pela seriedade pétrea do genro, continua:
-Perdoa-me, homem de Deus, por entrar por
esta porta, mas os acontecimentos assim o exigem. Quer dizer, acreditas que
alguma coisa é impossível para Deus? Depois olhou para o genro como se, naquele
momento, o mistério dos olhos de Deus lhe tivesse sido revelado e lhe
permitisse ler o pensamento de José Carpinteiro.
Outro homem teria sentido aquele olhar
como uma intimidação. O Carpinteiro aguentou-o sem mexer um músculo.
Embora ainda não tivesse percebido o que
a sogra queria dizer, José permanece sentado calmamente. Tinha vindo para uma
única palavra, um Sim ou um Não. Ponto final. E não ia sair de casa sem um Sim
ou um Não. Estaria a sua mulher em estado de graça? Era tudo o que ele queria
saber.
A mãe da Virgem estava a jogar com uma
vantagem, sabia que o genro José não sairia do seu lugar enquanto ela não lhe
desse o Sim ou o Não.
A verdade, toda a verdade e só a verdade,
era um Sim, um Sim maravilhoso, um Sim divino, um Sim eterno, infinito, um Sim
absoluto, indescritível, inexplicável.
Era também um Não, um Não total, um Não
sem concessões, sem discussões de qualquer espécie, um Não profundo,
inegociável, a Vida do Messias numa mão, a Morte do Filho de David na outra.
O que escolherias, amigo, escolherias o
escárnio, ririas de Deus na Sua cara, negarias a Deus o Seu poder de realizar
essa Obra extraordinária e sobrenatural?
Amigo, tudo é nada quando tudo é pouco.
Mas se a criatura recusasse o conhecimento do seu Criador e o submetesse ao seu
nível de inteligência natural, a obra extraordinária seria tirar esse burro da
cova dos tolos.
Os dados - porque a graça sopra com o
vento - estão ainda à espera da próxima jogada. É a vez de cada homem e de cada
mulher expirar a sua resposta. Afirmar-se no Sim ou no Não.
Se tivesses tudo de bom numa mão e tudo
de mau na outra, qual escolherias?
José, o Carpinteiro, segurou um dia os
dados da sorte do Filho de Maria na sua mão. Nunca na História do Universo um
homem passou por uma situação igual ou semelhante. A sua decisão iria mudar o
futuro do mundo. O seu Sim ou o seu Não elevaria ou afundaria todo o Plano de
Salvação Universal do seu Criador.
Dos seus lábios, porém, a mãe da Virgem
só podia esperar palavras de sabedoria. Com a força e a coragem próprias de uma
filha de Eva, a mãe da Virgem avançou com a sua revelação
-Vejamos, homem de Deus. Imagina que o
Senhor te desafia a pô-lo à prova. Sim, tal como parece. Imagina que o Senhor
te oferece a oportunidade de seres desafiado por ti para provares a ti próprio
que Ele é Deus de verdade, não apenas em palavras e porque consegue fazer mais
alguns truques do que os mágicos do Faraó.
Digamos que não te basta acreditar em
palavras que Ele é Deus, e queres, precisas de O ver com os teus olhos. Queres
ver o Seu Poder Todo-Poderoso e a Sua Omnisciência, queres vê-los em ação,
vencendo o mais difícil, vencendo a maior prova que possas imaginar.
Homem de Deus, sei que a tua fé é mais
forte do que a rocha, que, sem ver, estás satisfeito e contente com a Palavra
que viaja de boca em boca através do firmamento dos séculos para acreditar na
Verdade de Nosso Senhor. No entanto, concede-te esta oportunidade. Responde-me
sem preconceitos. Que prova porias a Deus que fosse digna do Seu poder
omnipotente e O obrigasse a pôr em cima da mesa toda a Sua omnisciência? Filho,
não te retraias, não mantenhas a tua língua presa no céu do teu coração por
medo de encontrar as palavras. Atreve-te, desafia o teu Criador, porque o
mereces, por tanto sofrimento, por tanta dor e tanta crueldade que os nossos
pais sofreram. O que éramos nós, filho, antes do Espírito de Deus pairar sobre
as águas dos nossos mares? Animais sem inteligência. Então, um dia, fomos
amados pelo nosso Criador e foi-nos dado o dom da fala. Agora, então, não o
negues a ti mesmo, fala, levanta a tua cabeça para o Todo-Poderoso, coloca a
tua alma aos seus pés, pede-lhe que faça uma obra extraordinária, única,
irrepetível, maravilhosa, à medida do seu Grande Espírito, para saciar a tua
sede de conhecimento e a tua fome de sabedoria. Ele é para ti. Pergunta a ti
mesmo que prova farias ao teu Criador, uma e nunca mais, santo Isaac; mas uma
prova que encherá a tua alma de uma felicidade infinita e o teu ser de uma
alegria eterna. Vem, não sejas tímido. E a mãe da Virgem calou-se.
Por mais estranho que vos pareça, José, o
Carpinteiro, ainda estava admirado. Veio à procura da resposta para uma coisa
tão simples como a verdade sobre o rumoroso estado de graça da sua mulher, e a
sogra saiu-se com uma discussão teológica. José ficou a olhar para ela,
tentando adivinhar o que se passava - era um Sim ou um Não? A sogra aproveitou
a confusão para levar a sua revelação um pouco mais longe.
-Filho, responde-me, implorou ela. Não me
mintas, nem fiques calado com medo de ofender o Senhor. Diz-me a verdade,
ousarias desafiar o teu Deus, ou recuarias e não abririas a boca com medo de
ofender o teu Criador?
Sem tomar fôlego, a Viúva respirou.
Regressa imediatamente ao campo de batalha.
-Homem de Deus, sei que te estou a
surpreender, mas concede-me estes minutos da tua vida. Volto a perguntar-te: o
que é que porias à prova a Deus? Ou digamos assim: qual seria o maior teste
para um Deus que jamais poderia ocorrer a um homem? Por exemplo, queres que Ele
te prove de uma vez por todas que é verdadeiramente Deus, que não reclamou para
si a glória do Ser Incriado. Queres que Ele apague todas as estrelas do céu?
Queres que o sol nunca se ponha? Queres que os burros voem? Queres que as
baleias andem? Não sei, o que é que tu queres? Qualquer um pode tornar-se um
imperador. Para Midas todos aqueles que podem. Não peças a Deus coisas que um
homem pode fazer. Vais desafiá-Lo com uma obra extraordinária, superior, vais
pôr-Lhe diante dos olhos um trabalho que nem Hércules, na plenitude da sua
glória, teria podido fazer. Queres que te explique? ... E o que é que eu te
queria dizer? Ah, sim, o que me preocupa é que, conhecendo a natureza dos
homens, tens a certeza de que, uma vez apagadas as estrelas do céu, não irás
procurar uma explicação natural para um fenómeno tão divino? Tens a certeza de
que os homens não irão dar a volta e encontrar uma causa natural que caiba na
tua cabeça para um sol congelado na cúpula do firmamento?
Depois de ter mandado a bola para o campo
dos outros, a viúva de Jacob de Nazaré calou-se. José, o Carpinteiro, não
entrou no jogo. Eu diria que qualquer pessoa que o visse sentado diante da
sogra, nessa altura, teria jurado que o homem de Deus tinha gelo em vez de
sangue nas veias. José, o Carpinteiro, não mexeu uma sobrancelha. Com o olhar
fixo na sogra, parecia mais uma estátua de pedra do que uma criatura de carne e
osso. A viúva manteve o olhar fixo. Ela sabia que o genro não diria uma
palavra; não era por acaso que o marido da sua filha tinha sido feito pelo
marido da sua Tita Isabel. Inspirada pelo grande amor que tinha pela filha, a
Viúva agiu como se o silêncio de José fosse um reconhecimento do valor da ideia
que estava em cima da mesa. José, que começava a ficar maravilhado com o rumo
que a conversa estava a tomar, embelezou o seu silêncio com as primeiras
palavras:
-Diz-me tu, mãe, porque hei-de eu negar
ao meu Criador a glória do Seu Braço?". E ela calou-se. A mãe da Virgem dá
o último passo. Chegou o momento.
-Filho. Eu não sou um homem. Ela tinha
dado o passo em frente, sim, mas na direção que lhe convinha.
-Não sei como é que vocês homens pensam,
insiste, fui criada a partir da costela de um homem. O que para um homem pode
ser a maior prova do Universo pode não ser tão grande aos olhos de uma mulher.
A única coisa que me pergunto é se, aos olhos de uma mulher, Deus pode ser
posto à prova mais do que conceber sem a intervenção de um homem. Quero dizer,
não à maneira dos filhos de Deus que dormiram com as filhas dos homens e
tiveram descendência. Sabes que, entre os gregos, os romanos e os bárbaros, os
seus deuses dormiam com as suas mulheres e davam à luz heróis, sendo o último o
próprio Alexandre, o Grande. Não, filho, estou a falar de outra coisa. Que uma
Virgem dê à luz um Menino sem conhecer homem algum.
Os olhos de José, o Carpinteiro,
arregalaram-se: o que é que a sogra estava a insinuar? Onde é que ela o levava
com este desvio metafísico? Estaria ela a embrulhar o Sim que ele tinha vindo
buscar numa espécie de nó teológico impossível de desatar? O assunto era tão
confuso que José ficou imóvel.
-Filho, achas que uma prova dessas
ultrapassaria os limites do Poder Divino? A Viúva continuou a atacar sem dar
tempo ao genro de preparar uma estratégia de contra-ataque.
De qualquer modo, o genro acabou por
falar. Não. Nunca. disse ele, todo sério.
E imediatamente regressou ao seu papel de
genro alucinado com as voltas que a sogra lhe dava à resposta simples e curta
que tinha vindo procurar: Sim ou Não. Parecia ser Sim, mas era Não.
Aparentemente o Sim estava a ser adoçado para que ele não ficasse demasiado
amargo com a pílula dos acontecimentos. Mas a ideia com que a sogra o desafiava
parecia tão fantástica que o seu corpo se recusava a sair sem primeiro ouvir
com os ouvidos a conclusão do argumento que lhe estavam a fabricar.
-Não esperaria menos de ti, filho,
interrompe a linha de pensamento da mãe que está pronta a defender a filha com
unhas e dentes. Agora vamos dar mais um passo em frente. O Senhor aceita o teu
desafio. O Senhor vai dar-te a prova que os teus ossos anseiam: vai fazer com
que uma virgem conceba um filho pelo poder e pela graça do Espírito Santo.
Lembras-te, filho, da profecia? Eu sei que sim.
-O profeta Isaías disse ao rei Acaz:
"Pede ao Senhor, teu Deus, um sinal nas profundezas do inferno ou no alto.
-E Acaz respondeu: "Não lhe pedirei;
não quero tentar o Senhor.
-Então Isaías lhe disse: "Ouve, ó
casa de Davi, porventura é pouco para vós perturbar os homens, que também
perturbeis o meu Deus? O próprio Senhor vos dará um sinal disso: Eis que a
virgem grávida está grávida, e chamará o seu nome Emanuel.
A Viúva parou de falar e olhou para a
alma de José. O Carpinteiro ainda não acreditava no que ouvia: ela estava a
dizer-lhe que o sinal se tinha realizado? Teria a Viúva enlouquecido, ou
estaria a tentar enlouquecê-lo? Como se lesse o seu pensamento, a Viúva reabriu
o assunto.
Filho, tu dizes para ti próprio:
"Vai direto ao assunto, minha senhora. E peço-te que não sejas impaciente.
Não estamos a falar de um assunto trivial, está em jogo a glória do Eterno.
Concede-te paciência. Se o atleta, por correr demasiado depressa, não vê os
sinais, salta por cima deles e chega à meta por uma estrada não sinalizada,
embora tivesse ganho de qualquer maneira se tivesse corrido na pista oficial, o
júri dar-lhe-á a coroa de louros? De facto, filho, já temos o Eterno em
movimento, à procura da Mulher, da Virgem em cujo seio o seu Sinal tomará
forma. Pergunto-te: sobre que bem-aventurada repousará Deus o seu Braço? Sobre
que mulher única e especial, entre todas as filhas de David, estenderá o
Altíssimo o manto da sua Glória? A qual amará como se ama o esposo único e
adorado? Dir-me-eis que o próprio Altíssimo a gerará e a predestinará desde o
ventre de seus pais para ser a Mãe. Ou será que Ele não se antecipa àquele que
pede, gerando-o para poder fazer esse pedido? É a omnisciência do Senhor que move
todas as almas que respiram na Sua presença. Não é o Seu Espírito a fonte que
inspira todas as palavras que Lhe chegam aos ouvidos? Claro que sim, filho. Ele
abre a boca daquele que pede: Que uma Virgem dê à luz sem a intervenção de um
homem! O Senhor sorri. Abre a boca e diz: "Eis que vos vou alucinar a
todos, fazendo uma obra que será recordada para sempre: O filho de Eva nascerá
daquela Virgem. Está feito, filho. Diz-me agora, de entre todas as mulheres,
que mulher escolherá o Altíssimo para ser essa Virgem abençoada?"
Por um momento, José, o Carpinteiro,
pensou que tinha ouvido tudo o que procurava, mas a ideia que a sua sogra lhe
apresentava era tão surpreendente que ficou indiferente. O que é que a Viúva
lhe estava a dizer, que a sua noiva estava em estado de graça por obra e graça
do Espírito Santo? A mãe da Virgem não lhe deu tempo para refletir muito.
-Põe-te ao corrente do caso, filho. Deus
anuncia qual será o Sinal em que demonstrará a Glória do Seu Filho perante toda
a criação. Do ventre dos Seus pais, Ele forma o casal que levará nos braços o
Menino nascido da Virgem. Mas agora há um problema a ultrapassar, um último
obstáculo a vencer. Sim, filho, o orgulho do macho, deixarás que o orgulho do
macho te cegue para a tua inteligência?
José compreende finalmente o argumento da
sogra.
"Está a dizer-me, mãe, que isso
aconteceu?"
-Não tires conclusões precipitadas, meu
filho. Deixa-me recapitular o caminho que percorremos até agora. O que é que o
Profeta disse mais tarde, falando do Menino que nasceu da Virgem?
Nasceu-nos um Menino, nasceu-nos um
Filho, que tem a soberania sobre os seus ombros, e será chamado Príncipe da
Paz, Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai Eterno...".
"O que é que nasceu, dizeis vós,
mãe? Ele interrompe-a. Pela primeira vez, José, o Carpinteiro, mexeu-se,
mostrando um esgotamento de paciência. A mãe da Virgem retoma o seu ataque
antes de perder a sua presa.
Não deixes que o orgulho do macho cegue a
tua inteligência, filho. Porque, se Ele não engana nem mente e cumpre todas as
Suas promessas, que diremos? Que os profetas de Israel eram todos mentirosos e
impostores? Que, para se glorificarem, escreveram as Sagradas Escrituras sem
outro objetivo que o de recitar poesia? Diz-me tu. Aguardo a tua resposta.
José, o Carpinteiro, seguiu o fio da
meada. Pensou que, vista assim, a Viúva tinha toda a razão. Ou o seu povo era
uma nação de impostores com uma capacidade infinita de se auto-enganar, ou
então não devia haver Nascimento. Até aqui tudo bem. O que já lhe estava a
ficar entalado na garganta era a conclusão que a mãe da sua mulher lhe estava a
apresentar. Dizia-lhe que a Virgem era a sua Maria. Ainda não lho tinha dito
com estas palavras, mas era evidente que todo este discurso tinha finalmente
esta afirmação final.
Esperta como era, inspirada pela fé, a
sogra corta-lhe a palavra. Poder-se-ia dizer que ela era mais do que inspirada,
era divina. Lê os seus pensamentos mais depressa do que ele os lê para si
próprio. Aproveitando-se disso, a mãe da Virgem entra em ação com toda a força.
-A minha filha, tua mulher, é a Escolhida
para conceber no seu seio o Menino que vai nascer daquela Virgem de que nos
falou o Profeta. Tu, José, és o Homem.
Por um instante, José esteve quase a
levantar-se e a encerrar aquela conversa inesquecível com um "basta".
Mas mantém-se sentado. A sogra continua.
-Diante de ti, filho, Deus abriu duas
portas. Essas duas portas permanecerão abertas perante as gerações que se
seguirão a nós, quando tu e eu formos uma recordação na memória dos séculos.
Uma é a da fé, a outra a da incredulidade. Se escolherdes a segunda, agireis
como aquele que desafiou o seu Deus e, quando descobriu que a Virgem escolhida
para lhe demonstrar a Sua glória era a sua própria mulher, revoltou-se contra
Aquele que ele próprio desafiava. Mas eu sei que tu não farás isso. Meu filho,
da inocência imaculada da minha filha sou testemunha perante todos. O seu anjo
vai tirar-te da escuridão da dúvida que te domina. A outra, meu filho, é a
porta da fé. O meu coração diz-me que escolherás esta. E que correrás em busca
da Mãe do Messias que o nosso povo espera há tantos milénios".
Inexplicavelmente, no seu leito de morte,
José Carpinteiro sorriu. Haverá morte mais bela do que a de uma criatura de
Deus que se despede deste mundo com um sorriso nos lábios?
Pois bem, todos os seus sobrinhos e
sobrinhas e o seu povo pensavam que José ia fechar os olhos para sempre quando
José se sentou e lhes pediu que saíssem e o deixassem sozinho com a mulher e o
filho. Sozinhos, os três, José respirou e começou a falar.
"Mulher, a minha boca ficou selada
até hoje por razões que tu própria compreenderás no fim das coisas que agora
nada me impede de levar ao teu conhecimento e ao do teu Filho.
Meu filho, que direi ao meu Senhor? a
minha alma está diante do meu Deus. Vou encontrar-me com o meu Juiz, perante o
qual terei de prestar contas da minha vida. Mas há uma coisa que tens de saber
antes de eu deixar este mundo.
A tua Mãe já te falou dos seus trisavós,
Isabel e Zacarias, que não conhecias e a quem eu e a tua Mãe tanto devemos. Sê
paciente comigo nesta última hora e lembra-te das minhas palavras no teu Dia.
Por onde começarei, como vos abrirei a
porta ao conhecimento dos homens e das mulheres que deram a vida aos pés do seu
Deus para que a vossa Luz despontasse nas trevas? Se nunca vos dei a conhecer
os factos que agora vos revelo, foi para vosso bem. Não me culpes por te ter
mantido à margem da história desses homens e mulheres que viveram os seus dias
no fio da navalha, com a cabeça por um fio, todos os dias da sua vida, para que
a tua Vinda se cumprisse. Tu saberás, filho, o que deves fazer quando o teu Pai
Eterno declarar aberto o teu Dia".
CAPÍTULO DOIS.
EU SOU O ALFA E O ÓMEGA.PRIMEIRA PARTE.
A SAGA DOS RESTAURADORES
|
A VERDADE GERARÁ A JUSTIÇA E O FRUTO DA JUSTIÇA SERÁ A PAZ. |